Quando pequena, acho que como a maioria de nós, me lembro de sempre voltar para casa no dia 19 de abril com um “cocar” de cartolina e pinturas no rosto. Um dia intensamente lúdico e absurdamente acrítico, em que aprendíamos uma história sobre “índios” (sic) que “viveram” no Brasil e que trocaram presentes com os “viajantes” portugueses que acabaram nessas terras por um erro de bom planejamento de viagem. As professoras nos ensinavam dancinhas, “jeitos de falar” dos “índios” (sic), reforçando o que aprendi posteriormente os estereótipos perigosos que proporcionariam um imaginário, e posição diante do país e dos povos indígenas, totalmente folclorizada e excludente.
Já por volta dos meus 12 anos, recebi uma notícia que embaralhou bastante minha já inquietante e imaginativa mente: minha tia avó me disse que minha bisavó, sua mãe, era “índia” (sic). Mas “como?”, eu me perguntava, já que “índios” deveriam viver no mato, sem roupas e dançando para a chuva, como haviam me ensinado por toda a vida? Desde aquele dia, passei a tentar a todo custo arrancar algo de minha bisavó sobre sua história.
Vez ou outra, bastava que estivéssemos sozinhas e eu sentisse a brecha, eu iniciava meu batalhão de perguntas cheias de interesse e marcadas por um olhar intrigado: Bisa, você é índia? Bisa, por que não conhecemos outros índios da família? Bisa, se índio vive na mata, como a senhora é índia e vive com a gente? Bisa, eu sou índia também? Não digo a vocês que todas as perguntas eram respondidas. Por uma questão particular, que não vem ao caso aqui, minha bisa não falava muito sobre isso e se esquivava o quanto podia de minhas investidas. Depois de um tempo, eu me tornei resiliente quanto a isso. E muito por certas explicações dadas por minha tia avó sobre as motivações de nossa bisa em não tocar muito no assunto.
Ao crescer, fui compreendendo melhor algumas questões. Debates em casa, na escola, as amizades e espaços que resolvi construir, me reposicionaram nessa discussão. Percebi que, o fato de ter uma bisavó indígena, não faz de mim uma indígena. Sou uma mulher negra. Aprendi que “índio” é termo pejorativo e que devemos respeitar uma história e construção tão ampla e diversa que abarca mais de 100 línguas e identidades em sua composição. E, o mais importante, aprendi que indígenas são os mais centrais guardiães do planeta e que isso não os limita a estereótipos alimentados por uma sociedade que, em verdade, os reproduz para manter verniz sob uma ferida ainda aberta e que segue sendo “cutucada”.
Esse Brasil que conhecemos se vende sob uma farsa histórica. Ao pensarmos a história brasileira, contada pelos genocidas, verificamos uma série de incongruências. Se essas viajantes-invasores sobreviveram no país, após meses em alto-mar, foi porque o reconhecimento, a empatia e a alteridade eram características de povos indígenas que ocupavam a costa brasileira. Como resposta a um comportamento que remete a diversas sociedades que o Ocidente considera, hoje, primitivas, da boa recepção a visitantes – nessa parte, sempre me indigno, já que a receptividade e reciprocidade também eram características da sociedade grega antiga, que convocam como berço civilizatório – os viajantes-invasores apostaram na violência, no massacre, na invasão e espoliação e no apagamento.
Ao falarmos em Abril Indígena, devemos nos reposicionar e perceber que temos responsabilidade – não como protagonistas, mas a temos – diante de um genocídio que continua em curso. Indígenas seguem sendo brutalizados, estereotipados e espoliados em nossa sociedade. Os marcos ocidentais, que se auto-reivindicam civilizatórios, mas que são a própria barbárie, seguem buscando limitar e circunscrever indígenas a um tipo mitologizado e que só é bem-vindo se subserviente e assimilador.
O Abril Indígena sempre me coloca a questão de que, em vez de uma agenda integralizadora, devemos buscar os caminhos da aceitação de que somos multiétnicos e multiculturais, ou seja, uma perspectiva mais ampla e que comporta todas as vivências, experiências e formas de organização social. O que nos faz interessantes enquanto país não é a mistura homogenizante, que apaga contribuições, diversidades e tensões, inclusive. Mas, acredito, uma multiculturalidade que só galgará algum avanço se esquecermos a ideia civilizatória que modela e controla grupos, para uma ideia e construção pactuada e simultânea.
Essa terra é Pindorama e não uma histórica terra romantizada que tem fugido à luta para garantir existências múltiplas. Brasil é Pindorama indígena, terra componente de Abya Yala e os que lutam corporificados indígenas lutam por sua existência e por toda a nossa sobrevivência. Não há luta de dias melhores, se não houver Planeta vivo para lutarmos e existirmos, como nos ensina Sonia Guajajara.
Virá que eu vi impávido e cheio de esperanças e propostas de vida e bem-viver. Mais do que uma curtida, mais que um compartilhamento, devemos agir em suporte, apoio e ao lado. Brasil é terra indígena, compartilhada conosco a ponto de sermos pertencentes e acolhidos, ainda sob a auspiciosa empatia e alteridade indígena.