Seis décadas sem Lady Day
Arte & Cultura

Seis décadas sem Lady Day

Seis décadas sem Lady Day

Billie Holiday, cujo nome verdadeiro era Eleanora Fagan, morreu há 62 anos, em julho de 1959, com apenas 44 anos de idade. Lembrei dela neste mês que é comemorativo à mulher negra latino-americana e caribenha. Não só pela efeméride em si e nem pelo drama e intensidade da sua voz inconfundível. Lembrei também da sua importância na luta pela igualdade racial em uma época que ela, já admirada e reconhecida, durante suas turnês, era obrigada a fazer suas próprias necessidades na rua em alguns Estados americanos mais radicais em relação à questão racial. Ela é considerada pelos críticos de música como uma das maiores e melhores cantoras de jazz da história, compondo um quarteto de divas que faz parte do imaginário dos amantes da música do século 20 junto a Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Dinah Washington, a última, particularmente a minha preferida, depois de Billie, claro.

Ela teve um histórico de vida semelhante ao de milhares, quiçá milhões de mulheres negras. Foi violentada aos dez anos por seu vizinho, abandonada pelos parentes, internada em um abrigo para meninas vítimas de abuso, de onde fugiu aos 12 anos depois de sofrer diversas agressões físicas e psicológicas. Passou a morar na rua, pedindo esmolas, mas conseguiu um trabalho informal, lavando o chão de um prostíbulo em troca de um local para dormir e uma refeição por dia. Aos 14 anos foi violentada novamente, dessa vez pelo dono do local, de onde fugiu e voltou a viver nas ruas, pedindo esmolas.

A música como salvação

A música surgiu na sua vida em 1930, de maneira informal. Eleonora entrou em um bar do Harlem, em NY, oferecendo-se como dançarina, mas não agradou à clientela (Billie era o nome que usava na noite como garota de programa). O pianista, com pena, lhe perguntou se sabia cantar, teve como resposta que “não, mas é meu sonho”. Ela cantou para a pequena plateia, foi aplaudida de pé e saiu de lá com um trabalho fixo, embora na época para complementar sua renda ainda continuasse a trabalhar na noite como profissional do sexo.

Billie nunca teve educação formal de música, autodidata, seu aprendizado foi ouvindo as canções de Bessie Smith e Louis Armstrong. Gravou seu primeiro disco em 1933, com nada mais, nada menos que Benny Goodman e sua big band, que foi um sucesso estrondoso, possibilitando que comprasse um apartamento e deixasse definitivamente a vida de garota de programa e cantora informal. A partir daí, Billie Holiday entrou para a história da música americana, e posteriormente mundial, ganhando ótimos cachês para cantar em diversas casas noturnas conceituadas de Nova York.

A vida fora dos palcos

Bela, geniosa e talentosa, Billie tinha um raro instinto para se envolver com cafajestes, como o primeiro marido, Johnnie Monroe, que lhe fornecia drogas e era violento. Depois dele foram mais dois casamentos, com Joe Guy e Louis McKay, o primeiro lhe roubou muito dinheiro e o outro era também violento com ela. Billie terminou seus três casamentos por motivos idênticos, devido às constantes humilhações, traições e as agressões que sofria. Mas além dos maridos, Billie, de acordo com as fofocas da época, teria tido casos com o galã Clark Gable e com o ator e cineasta Orson Welles, tendo se tornado também amiga íntima da famosa atriz da época, Tallulah Bankhead.

Lady Day

Billie Holiday foi uma das mais comoventes cantoras de jazz de sua época. E até hoje quem a ouve nunca esquece sua voz levemente rouca e etérea, sua dicção, seu fraseado inconfundível, a sensualidade à flor da pele e da voz. Um vulcão de emoções. Fora do palco, da cena, era um furacão de intensidade consumindo sem parcimônia muito álcool, cocaína, maconha e heroína, e se envolvendo com homens e mulheres. O grande Lester Young, com quem gravou em quatro anos cerca de 50 músicas, foi quem lhe apelidou de “Lady Day”.

Seu apogeu foi entre 1933 a 1944. A partir da segunda metade da década de 1940, já sem controle sobre o vício da heroína, sua voz, um fiapo, perdeu o frescor, a potência, mas nunca a dramaticidade e intensidade. Seu último grande momento como intérprete é a gravação de um programa de TV, em 8 de dezembro de 1957, nos estúdios da rede CBS, em Nova York, talvez o resumo perfeito da tragédia pessoal da cantora. Convidada a participar do programa The sound of jazz, de grande sucesso na época, Billie não era mais sequer a sombra da intérprete que imperou nas décadas de 1930 e 1940. Os pouco mais de oito minutos da gravação podem ser vistos na internet e tem momentos constrangedores.

Billie no cinema

Para quem quiser conhecer mais sobre esse ícone da música mundial, uma mulher negra que deixou uma marca inesquecível no imaginário do século 20, há um filme lançado recentemente, “Estados Unidos vs Billie Holiday”, disponível em plataformas digitais de filme sob demanda, que tem roteiro da dramaturga vencedora do Pulitzer Suzan-Lori Parks. A intérprete do filme, a cantora Andra Day – já premiada com o Grammy – foi vencedora do Globo de Ouro de melhor atriz dramática e indicada ao Oscar de melhor atriz por sua atuação como Billie. A própria, inclusive, canta de fato as músicas do filme.

Strange fruit

O governo dos Estados Unidos a perseguia constantemente, e Billie dizia que não era só devido ao fato dela ser usuária de drogas, como era imaginado pela opinião pública. O motivo principal era a canção “Strange fruit”, um hino contra o linchamento de afro-americanos, escrito na década de 30. Para a cantora, a música fazia o governo se lembrar de que ele era o responsável pelas mortes da população negra. “Strange fruit” foi emblemática na sua carreira, tendo sido incluída na lista de canções do século da Recording Industry of America e da National Endowment for the Arts.

Considerada um marco inicial na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, Billie interpretou pela primeira vez a famosa música em 1939, dois anos antes do senado americano ter analisado um projeto de lei que proibia o linchamento de afro-americanos, mas cuja lei não foi aprovada. “Strange fruit”, um poema de três estrofes, foi escrita em 1936 por um professor judeu de Nova York, Abel Meeropol, depois de ver uma fotografia de 1930 que mostrava o linchamento de dois rapazes negros no estado de Indiana. Na imagem, os corpos estão pendurados numa árvore, como frutos, cercados por uma multidão de mulheres e homens brancos. A música se transformou em um dos maiores hinos de toda a história contra a violência racial. Era o ponto alto de suas apresentações, e conta-se que quando Billie cantava a música era tamanha a intensidade da sua interpretação que um silêncio pesava sobre o teatro ou clube, e era comum a plateia ir às lágrimas. Quando estava no palco nunca cantava uma música da mesma forma duas vezes.

Mas naqueles anos ela só podia interpretar a canção em lugares considerados seguros, e na região sul dos Estados Unidos, na época, não era nada seguro. Na década de 1930, em suas turnês, Billie enfrentava não só preconceito das plateias, mas também – e principalmente – dos empresários que a contratavam e nos hotéis que a recebiam. Muitas vezes era obrigada a entrar pela porta dos fundos, e em Estados mais racistas no sul do país muitas vezes era obrigada a fazer suas necessidades na rua. E quando a banda parava na estrada, em paradas para viajantes, ela ficava do lado de fora dos restaurantes. Vale lembrar que no auge da segregação racial ela foi uma das primeiras negras a cantar em uma banda de homens brancos, como nas big bands de Artie Shaw e Count Basie, e consagrou-se apresentando-se com as orquestras de Duke Ellington.

 

O final

Seus últimos dias de vida foram bem tristes. Bille foi internada mais uma vez para se tratar do vício em heroína, do qual nunca conseguiu se livrar. No dia 31 de maio de 1959 foi para o Hospital Metropolitano, em NY, com agravamento de sua cirrose hepática, também tendo sido diagnosticada com insuficiência cardíaca e edema pulmonar. Morreu no dia 17 de julho, sob vigilância policial e, segundo alguns biógrafos, algemada na cama depois que foi denunciada à polícia por uma enfermeira que a teria flagrado usando drogas no hospital. Durante sua necrópsia, os médicos encontraram 750 dólares escondidos dentro de uma meia de seda que ela usava, o seu último dinheiro. Mas apesar de tudo, Billie Holiday deixou interpretações que reverberam no mais profundo da nossa alma. Entre suas marcas registradas, além da voz inconfundível, ela usava quase sempre luvas longas, que tinham também, além da função estética, a função de esconder as marcas de agulhas nos braços devido ao vício em heroína. E as famosas gardênias usadas no cabelo. Fora dos palcos, ela gostava de casacos de pele e óculos escuros com armações cravejadas de brilho. O mesmo brilho que reluz até hoje com suas interpretações que desde a primeira vez que a ouvi me fez chorar como choro até hoje.