Você sabia que o Brasil é um dos países com mais escritores indígenas? E que um deles já vendeu mais de 5 milhões de exemplares de suas obras? Acredito que muita gente não saiba, quiçá pelo pouco espaço que essas autoras e autores encontram no mercado editorial.
Há mais de 30 anos, com a Constituição de 1988, teve início às discussões para a criação de políticas públicas para a alfabetização dos povos indígenas, mas foi só duas décadas depois, em 2008, com a promulgação da Lei 11.645, que as coisas realmente começaram a melhorar. A lei regulamenta a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e Indígena no currículo das escolas, o que abriu caminhos para a publicação de obras literárias relacionadas aos dois temas. Mas “antigamente”, pelos paradoxos da realidade brasileira, infelizmente quem produzia esse conteúdo ainda eram (e ainda são em muitos casos) pessoas não-indígenas.
O panorama tem mudado paulatinamente, e a literatura indígena brasileira desenvolvida a partir da década de 1990 é um fenômeno político-cultural extremamente relevante na esfera pública, que opera com uma dinâmica que une ativismo, militância e engajamento de minorias que foram sistematicamente e historicamente marginalizadas e invisibilizadas pela nossa sociedade. Mas que felizmente, agora, assumem um protagonismo público, político e cultural de autoafirmação e auto expressão identitárias. Mais do que um lugar de escuta, de escrita, é um lugar de resistência e de reexistência.
Autoras e autores indígenas
Aqui na Bemglô já falamos sobre alguns nomes que são imprescindíveis para conhecer a produção literária indígena no Brasil como Eliane Potiguara, que foi uma das 52 brasileiras indicadas ao projeto “Mil Mulheres para o Prêmio Nobel da Paz”; Ailton Krenak, escritor e um dos mais renomados líderes indígenas do país que atua na causa desde a década de 1980; e Davi Kopenawa, escritor, xamã e líder político Yanomami.
Mas existem outros autores que merecem destaque como o escritor, professor e psicólogo Daniel Munduruku, autor de mais de 50 obras, a maioria infanto-juvenil, e de livros fundamentais para o conhecimento da cultura indígena brasileira como “O Banquete dos Deuses – conversa sobre a origem e a cultura brasileira” e “Contos Indígenas Brasileiros”. Ele já recebeu duas vezes a Comenda do Mérito Cultural, e um Prêmio Jabuti, um dos mais importantes do país. Hoje, Daniel e seus mais de 50 títulos já venderam 5 milhões de cópias. Tem também o Olívio Jekupé, conhecido pela sua produção em literatura infantil, e que tem obras publicadas em português e em Guarani. Ele é autor do livro “Literatura escrita pelos povos indígenas”, entre outros, membro do Núcleo de Escritores e Artistas Indígenas (Nearin) e um dos fundadores da Associação Guarani Nhe’en Porã. Ou ainda Kaká Werá Jecupé, escritor, ambientalista e conferencista brasileiro da etnia Tapuia, para quem a literatura indígena atua como um instrumento político que, aliada ao movimento indígena brasileiro, “se constitui e se vincula pública, política e culturalmente como crítica da cultura, descatequização da mente e reorientação do olhar, a partir do próprio protagonismo indígena”.
Entre as mulheres, temos a Graça Graúna, escritora, formada em letras pela Universidade Federal de Pernambuco, e uma das mais famosas artistas indígenas do País. Ela foi responsável pela coordenação do Projeto de Especialização para Formação de Professores Indígenas no Estado de Pernambuco, que teve repercussão em todo País e foi como uma semente para outros projetos semelhantes. E há ainda nomes mais jovens como o de Julie Dorrico, escritora e poeta da etnia Macuxi, Dra. em Teoria da Literatura (ela foi aprovada em primeiro lugar no doutorado da PUC/RS), pesquisadora e curadora de Literatura Indígena. Segundo ela, atualmente existem cerca de 60 autores indígenas no Brasil. Como ela mesma diz, “a literatura indígena tem ensinado o leitor não indígena a repensar a história, a memória, os imaginários simbólicos impregnados no imaginário nacional”.
A pedra de luz
Mas entre tantos nomes destaco o da cearense Auritha Tabajara, que no registro de batismo era Francisca Aurilene Gomes, e que seu nome tupi carrega um belo significado em português: pedra de luz. Índígena, nordestina, poeta, lésbica, reconhecida por ser a primeira cordelista indígena do Brasil, Auritha publicou em 2007 o livro “Magistério Indígena em Verso e Poesia”, que foi considerado como leitura obrigatória nas escolas públicas do Ceará. Ela morou quase uma década de São Paulo, com sua filha, mas retornou para o Ceará durante a pandemia devido às dificuldades que enfrentou. Contadora de histórias, ela teve contratos suspensos e se não fosse seus amigos e admiradores não teria conseguido dinheiro para viajar de ônibus rumo ao Sítio Boa Esperança, no seu Estado natal.
Se antes o espaço da literatura indígena era ocupado por obras infantis ou infanto-juvenil, hoje o cenário mudou e vemos filósofos, pensadores do porte de Krenak e Kopenawa que não só têm despertado o interesse do grande público no país, como também reverberam no mundo. Juntam-se a eles novas vozes, linguagens, temas e outros nomes como Tiago Hakyi, Márcia Kambeba, Cristino Wapichana, Biraci Brasil Nixiwaka e tantos outros e outras que, com suas sabedorias e tradições, nos oferecem esperança por intermédio de suas prosas, poesias e cordéis.