Estudos têm demonstrado que maneiras urgentes para mitigarmos e termos maiores condições e capacidades formulativas para lidar com as mudanças climáticas passam pela participação e o empoderamento feminino.
Há quem tente, mas não é mais possível negar que vivemos na era das mudanças climáticas. Há quem tente emplacar o negacionismo sobre o que vivemos, inclusive, com espaço em colunas de grande projeção. Sempre que vejo o negacionismo das mudanças climáticas, ou seja, a negação das consequências do impacto humano no Planeta, fico pensando: a quem isso serve? Eu cresci ouvindo que era preciso cuidar da Terra, nosso lar. Eu cresci fazendo peças de teatro na escola nas quais, ao final, plantávamos árvores. E aquilo nos dava a falsa, falsérrima, impressão de que estávamos, de alguma forma, contribuindo, fazendo nossa parte. Contudo, a Terra é mais complexa e demanda mais de nós. Mas demorou muito tempo para que eu compreendesse a real dimensão do problema. Em realidade, essa compreensão mais profunda apenas tomou forma quando conheci o movimento feminista.
Em um primeiro momento, pode parecer um absurdo estabelecer relação entre Feminismos e Mudanças Climáticas. Mas, ao mesmo tempo, falar sobre isso não é uma novidade, posto que não um desejo, mas uma realidade de dimensões analíticas e formulativas, tanto dos movimentos feministas, quanto de organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU). Em estudo publicado pela entidade, em 2009, já se apresentava que a discussão sobre mudanças climáticas demandavam uma participação ativa, se não central, das mulheres e da relação com o combate às desigualdades de gênero e raça.
Pela precarização de suas condições de vida e por ganharem menos que os homens, mulheres enfrentam o processo de “feminização da pobreza” e estão mais vulneráveis, principalmente em países periféricos, às mudanças no clima. As desigualdades constituídas em hierarquias de gênero pelo Patriarcado, além de precarizem de forma política e econômica as mulheres, também reforçam dificuldades, já que mulheres pobres assumem mais as tarefas de produção e garantia da alimentação familiar e, em muitas localidades, são as responsáveis pela coleta da água – lembremos que ainda vivemos uma realidade em que água potável está longe de ser um direito garantido universalmente no Brasil e no mundo.
Essa situação de precariedade faz com que mulheres, notadamente pobres, negras, indígenas, árabes, etc., contribuam menos para o aquecimento global, posto que há limitação econômica e, portanto, de consumo, bem como das técnicas aplicadas para exploração e produção de alimentos onde estão localizadas. Segundo o mesmo estudo de 2009, da ONU, apenas 2,5 bilhões de pessoas recebem o suficiente para que estabeleçam um padrão de consumo que contribua para as mudanças climáticas. Ou seja, estamos falando de 1/3 da população sendo responsável pelas emissões de gases de efeito estufa e pela produção massiva de lixo; sendo que uma fração ainda menor é responsável por ações de grande impacto, como as indústrias da carne, do vestuário e de automóveis. Contudo, as ações deste 1/3, mas principalmente dos responsáveis pelos modelos industriais, econômicos e políticos de produção e exploração do planeta, impactam a vida de todos e de modo diferenciado.
Obviamente, o efeito estufa é um fenômeno natural. Contudo, vivemos um agravamento e aceleramento sem precedentes na História da emissão de gases que o ocasionam e, portanto, da retenção de calor na Terra, notado principalmente após a Revolução Industrial. Cientistas apontam que o aumento da temperatura do planeta em 1,5o pode ser fatal à vida humana na Terra. Mas, segundo organismos que acompanham o aquecimento global, já atingimos a marca de aumento de temperatura em 0,85o . Os impactos são visíveis: enchentes, infertilidade de solo, ondas de calor que colocam em risco a vida, incêndios que deslocam e impõem adaptações a essas mudanças.
Se as mulheres são, em muitas localidades, as responsáveis pela produção e provimento dos alimentos, pela agricultura, pense no impacto das mudanças climáticas com o aumento das secas. Isso impõe que essas mulheres precisam se deslocar mais, não tendo as condições econômicas e sociais para isso, para prover essa alimentação. No caso de incêndios e enchentes, de fenômenos que demandam evacuação rápida, mulheres também serão as mais impactadas. Ora, basta pensar que na sociedade patriarcal, nós somos as responsabilizadas pelo cuidado de crianças e idosos. Então, quem garantirá essa evacuação? Quem está mais vulnerável à violência por esse deslocamento e à morte nessas condições? Feminismo e Mudança climática tem muito a ver.
Por esses diagnósticos e análises, estudos têm demonstrado que maneiras urgentes para mitigarmos e termos maiores condições e capacidades formulativas para lidar com as mudanças climáticas passam pela participação e o empoderamento feminino. Isso se dá porque mulheres, em geral, agem em redes e grupos locais, em construções e dinâmicas comunitárias, além de compreenderam mais profundamente os impactos catastróficos do aquecimento global porque os vivem cotidianamente. Esse processo, obviamente, só se efetiva com um olhar e perspectiva estrutural e estruturante sobre gênero, raça e classe, tendo em vista que as mais impactadas são mulheres, de origens étnicas diversas e não-eurocêntricas, e pobres.
Esse é um debate que vem avançando lentamente, já que apenas em 2009, ano do estudo que nos baseia aqui, que a equidade de gênero se estabeleceu como agenda legítima nas discussões e rodadas sobre as mudanças no clima. O debate sobre cidades sustentáveis, em que haja outra forma de pensar o viver e o consumir em coletivo também tem avançado, apesar de aplicado morosamente pelos agentes públicos e políticos.
Mas um outro debate também se faz necessário, posto que sem ele não há como pensar estruturalmente a crise em que estamos e as medidas necessárias para construir saídas de permanência de vida humana no planeta: as necessárias mudanças nos modelos de produção e exploração, articuladas a mudanças em nossos comportamentos. Se os principais responsáveis pela emissão de gases que aceleram o efeito estufa estão concentrados em ramos de indústrias, carnes e alimentos, têxtil e de petróleo e gás, precisamos discutir tanto esses modelos de produção em massa quanto nossos padrões de consumo. Não há como pensar esse debate no oito ou oitenta, ou seja, na “culpa” apenas da indústria ou na “culpa” apenas do nosso consumo. Contudo, é preciso balanço nessa discussão, já que individualmente não resolvemos de fato essa questão, mas tão pouco podemos ficar de braços cruzados. O envolvimento nesse debate faz ser inevitável questionar as grandes cadeias e empresas exploradoras de recursos naturais e exploradoras.
O que quero dizer é: nossa consciência não pode se limitar a uma perspectiva individual e liberal. Isso não garantirá que sigamos vivos. Essa consciência precisa estar conectada às pautas e demandas sociais e políticas, econômicas e culturais, almejando o comum, o fim de hierarquias de classe, de raça e de gênero. Ou a conta nunca vai fechar. Se nossa espécie quer continuar como parte do Planeta, será preciso rever todo esse modelo em que vivemos radicalmente. Se ver mais natureza e não a Terra como um lar. Todos somos parte e não há uma hierarquia nisso: seja do uso dos recursos, seja de permanência de existência aqui. Parece um papo de Mufasa com Simba, em desenho animado. Mas há mensagem política nisso: hoje, nós somos o vírus mais letal existente. Estamos corroendo tudo, todos e nós mesmos. E não há objeto fálico de tecnologia espacial que nos salve dessa.
“O capitalismo quer nos vender até a ideia de que nós podemos reproduzir a vida. Que você pode inclusive reproduzir a natureza. A gente acaba com tudo e depois faz outro, a gente acaba com a água doce e depois ganha um dinheirão dessalinizando o mar, e, se não for suficiente para todo mundo, a gente elimina uma parte da humanidade e deixa só os consumidores. (…) Algumas pessoas sugerem que quem sabe viver no mundo são os ricos, que a pobreza é responsável pela destruição do meio ambiente. Essa afirmação, além de ser racista e classista, é assassina. Porque alguém que está no lugar do rico dizendo que os pobres – que são 80% da população mundial – estão destruindo o planeta pode acabar sugerindo também que os pobres não precisam mais viver. A verdade é que nós não precisamos de nada que esse sistema pode nos oferecer, mas ele nos tira tudo o que temos. (…) A mesma dificuldade que muita gente tem em entender que a Terra é um organismo vivo, eu tenho em entender que o capitalismo é um ente com o qual podemos tratar. Ele não é um ente, mas um fenômeno que afeta a vida e o estado mental de pessoas no planeta inteiro – não vejo como dialogar com isso”.
(Aílton Krenak, em “A vida não é útil”.)