O feminismo é a lente para que seja possível reinventar toda a sociedade.
O momento atual é muito difícil. Vivemos com se em uma turbulência que não cessa e com intensos momentos de queda livre. Ao afirmarmos que a Terra é um organismo vivo, estamos deixando de lado a subestimação dos nossos impactos nela. Se as relações são violentas entre nós, elas são brutais na relação com a Terra. E a conta vem chegando. Não relacionar, por exemplo, esse momento pandêmico com o modo como exploramos a Terra é como embebedar-se na alienação completa.
No mês das mulheres, a gente fica pensando: e como nós estamos nisso tudo? Como está a vida das mulheres durante essa pandemia? Quais são as propostas que a luta cotidiana das mulheres pode trazer para que a gente tente, ao menos, como diz Ailton Krenak, acionar o paraquedas?
O patriarcado, esse sistema de poder que faz das relações entre homens e mulheres desiguais, impacta em tudo e, principalmente, em como vemos e nos relacionamos com o mundo. Uma pesquisa de 2020, realizada nos Estados Unidos e no Reino Unido, pela Middlesex University junto ao Mathematical Science Research Institute, apontava que mulheres aceitavam mais o uso das máscaras do que homens. Nós sabemos da importância das máscaras nesse momento: quando apropriadas, elas reduzem drasticamente a possibilidades de infecção, bem como a carga viral dessa infecção, o que tem impactos na gravidade da doença desenvolvida. A despeito das diferenças entre homens e mulheres sobre o uso das máscaras diminuírem para ambientes em que esse uso é obrigatório, é impressionante a diferença em outros espaços públicos: 44% das mulheres usando sempre as máscaras frente a apenas 29% dos homens. E os motivos são patriarcalíssimos: homens associavam o uso da máscara a vergonha; fraqueza; além de não acreditarem que seriam afetados pelo vírus, num explícito sinal de uma masculinidade hegemônica baseada em uma ideia equivocada sobre força.
Mesmo diante desses números, e de homens serem a maior parte das vítimas fatais da covid-19 – e, no caso do Brasil, essa taxa atinge majoritariamente homens negros – os impactos da pandemia na vida das mulheres têm sido devastadores. Segundo pesquisa da ONU, de 2020, 70% das pessoas que trabalham na saúde, linha essencial da guerra contra o vírus, são mulheres. Além disso, quando observamos o setor de serviços, incluídos os essenciais, mulheres são a maioria desse contingente. Basta observar quem está trabalhando no mercado que você frequenta uma vez por mês.
Se olharmos para a área educacional, o quadro não melhora. Seja porque mulheres são a maioria do professorado, e foram afetadas diretamente por um retorno às aulas sem respaldo suficiente e eficiente dos governos; seja porque a suspensão das aulas escolares e do serviço, já precário, de creches também foram suspensos. Pesquisas indicam que cerca de 10% das mulheres economicamente ativas deixaram seus empregos para cuidar de crianças e idosos, durante a pandemia. Além disso, em pesquisa realizada pelo Instituto Pólis, ainda em 2020, apontava um aumento de 30% nos casos de violência doméstica.
Esse cenário tem sido tão desolador, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem falado em “sindemia global”, tendo em vista o conjunto de variáveis socioeconômicas que favorecem formas mais graves e fatais da covid-19. E seria possível ainda listar muitos outros aspectos que impactam direta e negativamente a vida das mulheres.
E como podemos pensar a luta das mulheres, o feminismo e/ou a mulheragem, como contribuição irremediável se quisermos perspectivas de futuro? A produção intelectual e ativista de mulheres tem se apresentado como filosófica, política, econômica, social e cultural. Ao falarmos de igualdade entre homens e mulheres, estamos lidando com uma proposta que tem como objetivo uma sociedade com outros marcos de ser e estar no mundo.
Inspiradas pelos movimentos negros pelo fim da escravização, as lutas das mulheres historicamente tem se contraposto a universalidades impositivas que deságuam em apagamentos de uma ampla diversidade entre nós. Isso decorre da compreensão de que a multiplicidade e a diferença são ricas fontes de diálogos e construção de saídas alternativas que vislumbrem e construam outros processos e relações humanas. Essa dimensão do pensar está atrelada a uma reflexão sobre a necessidade de reconhecimento do outro como igual, como espelho, e que as diferenças são riquezas que não devem ser utilizadas para a sustentação de relações desiguais, mas equânimes.
Para isso, a formulação do pensamento feminista negro é importante, tendo em vista que admite a tensão como fagulha de conjunção e construção de consensos. Afinal, sabemos que diferenças são difíceis de lidar, nos colocando em situações, algumas vezes, limítrofes. Mas se estamos falando de outros parâmetros de relação, a agenda comum se constrói por essas percepções diferentes e que, em contato, produzem o novo. Nada disso acontece sem agitações, mas viver o democrático enquanto uma ética, significa construir relações de respeitabilidade e não apenas de tolerância.
Ao pensarmos na chave do feminismo negro, percebemos uma formulação a partir da ideia do feminismo enquanto uma ferramenta analítica das desigualdades e das hierarquias constituídas a partir de papéis, de performatividades de gênero e que tem impacto negativo na vida das mulheres. O feminismo é, então, uma lente para que seja possível reinventar toda a sociedade. Dos eixos do pensamento feminista negro, organizados pela intelectual Patricia Hill Collins, com os quais Luiza Bairros coaduna e reproduz, estão: o legado de uma história de luta; a integração de raça; gênero e classe, ou seja, a interseccionalidade; o combate aos estereótipos e imagens de controle; a atuação como professoras e líderes comunitárias e familiares; e a política sexual.
A condição de “discriminadas entre os discriminados”, como afirmou Lélia González, gera desconforto e dor entre mulheres negras, mas também uma oportunidade a partir de um olhar das margens na percepção das opressões e na formulação de alternativas frente aos sistemas de dominação. Essas compreensões nos levam a afirmativa da filósofa Djamila Ribeiro de que o feminismo negro não é um movimento identitário, como vulgarmente se dissemina, mas uma produção que se debruça na formulação e construção de agendas pela disputa de poder e por processos democráticos; sob uma perspectiva de impulsionar vozes insurgentes e múltiplas histórias; de construção de redes de solidariedade; da busca pela transcendência e da coexistência; de reconhecimento de saberes e de reconstrução e restituição de humanidades negadas. E são esses os pontos de partida irremediáveis se queremos vislumbrar algum futuro em que humanos sigam coexistindo no planeta.