Imagine você – com pedras de gelo doce e salgado na boca – entrar em um túnel escuro sem saída, de oito metros de extensão, sentindo uma corrente quente de ar em sua direção. Essa é “Entrevendo”, instalação do artista contemporâneo brasileiro Cildo Meireles que dá nome à maior exposição a ele dedicada até hoje na América Latina. Ele começou a reverberar no cenário artístico nacional e internacional há 50 anos com uma prática comum de alguns artistas nas décadas de 1960 e 1970, o uso de estratégias da arte conceitual com ativismo político em obras que questionavam a concepção da arte apenas como representação.
Cildo já causava décadas atrás, nos anos 70, com as suas “Inserções em Circuitos Ideológicos”, obra com a qual executou no período uma verdadeira guerrilha contra o sistema repressor da ditadura militar. Em “Quem matou Herzog?” (1975), ele carimbou cédulas de dinheiro com a pergunta do título, questionando a autoria do assassinato do jornalista que foi preso e torturado por agentes da ditadura militar. O objetivo do trabalho era criar um sistema de circulação e troca de informação, de mensagens que não dependiam de nenhuma espécie de controle centralizado. Não havia um eixo fixo.
Outras mensagens foram inseridas em garrafas de coca-cola impressas em cor branca, que as tornavam quase invisíveis quando as garrafas estavam vazias. Mas quando estavam cheias do xarope do refrigerante elas tornavam-se visíveis. O trabalho consistia não somente nas mensagens do artista, mas em um convite para que todos – não apenas o público de museus e galerias – efetuarem e trocarem essas mensagens críticas.
Todos, de alguma forma, tornavam-se artistas. Uma grande utopia de boa parte do modernismo e principalmente do artista alemão Joseph Beuys, por exemplo. E se os ready-mades de Marcel Duchamp eram objetos [in]discretos do cotidiano inseridos no circuito da arte desfazendo toda a áurea que a arte trazia consigo até então; as inserções de Cildo Meireles faziam e fazem com que a arte se insira diretamente no cotidiano de cada um de nós operando outros mecanismos transformadores da realidade. Sua obra coloca em foco as relações entre arte e vida, em detrimento de simplesmente representar o mundo.
O carioca que nasceu em 1948, é hoje considerado um dos maiores artistas brasileiros em atividade, quiçá o maior. Sua obra está exposta no Instituto Inhotim [MG] e em grandes museus pelo mundo. Para ter um ideia, Cildo Meireles já teve retrospectivas em dois ícones da arte contemporânea mundial, a Tate Modern, na Inglaterra, e o Centro Georges Pompidou, na França. Com curadoria de Julia Rebouças e Diego Matos, a mostra em cartaz no Sesc Pompéia, em São Paulo, ocupa três mil metros quadrados e reúne 150 obras, incluindo desenhos, gravuras, instalações e objetos, que vão da década de 1960 até o presente. Uma oportunidade imperdível para toda uma geração de adolescentes conhecer e sentir a obra desse grande artista. Afinal de contas, quem tem 20 anos ou menos talvez ainda não conheça a obra de Cildo Meirles, visto que que suas últimas grandes exposições aconteceram em 2000, em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Logo na entrada da mostra o visitante é recepcionado por “Olvido”, uma oca construída com cédulas de diversos países latino-americanos, construída sobre ossos [de boi] e rodeada por um grande muro/cerca de velas. Lá dentro soa, ecoa uma motosserra. A instalação revela nessa alegoria tão real e atual o processo de colonização do continente. Outro destaque da mostra é a inédita no país “Amerikkka” (1991/2013), obra cujo título faz referência à organização norte-americana de extrema-direita Ku Klux Klan, e que convida o público a caminhar por 17 mil ovos de madeira sob uma plataforma com 33 mil balas de armas de fogo. Vale lembrar que no ano passado Cildo atualizou uma das suas intervenções mais famosas —a das cédulas de dinheiro— para carimbar nelas o rosto de Marielle Franco, vereadora assassinada no Rio de Janeiro em março de 2018.
Seus trabalhos são muito potentes e ativam não só o cérebro, mas também – e principalmente – o corpo. Existe um eixo ontológico extremamente coerente em sua produção, que re[a]presenta as coisas existentes no mundo, a natureza do ser e da realidade. Cildo dialoga com o sujeito em si mesmo, com toda sua complexidade no espaço e no tempo. No aqui e no agora.
Muitas de suas obras são atravessadas por temas políticos e sociais. Na instalação “Missão, Missões (Como construir catedrais)”, que foi criada em 1987 e refeita pelo artista em uma nova versão para a exposição, Cildo reúne moedas, ossos de boi e hóstias para falar da catequização dos povos indígenas. A morte, o espiritual e o material reunidos em uma só obra que nos atinge como um soco.
Há também “Eureka/Blindhotland (1970-2018), montada pela primeira vez em sua totalidade, composta por centenas de esferas de borracha do mesmo tamanho, mas de diferentes pesos que não só enganam os olhos, mas também o tato. Não é só a visão que interessa a Cildo, é o corpo todo e todos seus sentidos. Não é à toa que a interjeição que dá nome à obra teria sido dita pelo matemático grego Arquimedes ao desvendar a relação entre densidade e volume E a instalação desconstrói a relação direta entre tamanho e peso, causando uma desordem cognitiva no visitante. Algumas de suas instalações colocam em cheque nossas noções de espaço e tempo. Sua obra abriga em suas múltiplas camadas a matemática, a física e a arquitetura, porque afinal – cada uma com suas particularidades – são também artes.
Na mostra tem também a poesia sutil e potente de “Volátil” (1980/1994), na qual, descalço, o público percorre um caminho impregnado de cheiro de gás que, ao fim, leva a uma sala iluminada apenas por uma vela. Não dá pra falar muito sobre a mostra em cartaz até fevereiro do ano que vem no Sesc Pompéia. Tem que ver. E principalmente sentir, pensar, refletir e levar consigo para ecoar tudo que Cildo nos diz e que é urgente.