A vida é útil ou não?
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A vida é útil ou não?

A vida é útil ou não?

O título já traz uma provocação. “A vida não é útil”, livro recém lançado pela editora Companhia das Letras, cabe quase na palma da mão e é daqueles que você lê de uma sentada e fica com vontade de ler tudo que seu autor escreveu. Além do fato de fazer com que ao término de sua leitura a gente se sinta feliz por saber que existe um ser humano vivo e atuante como o mineiro Ailton Krenak, um dos mais influentes pensadores da atualidade. “A vida não é útil” reúne cinco textos adaptados de palestras, entrevistas e lives realizadas entre novembro de 2017 e junho de 2020, com pesquisa e organização de Rita Carelli. São eles: “Não se come dinheiro”, “Ideias para adiar o fim do mundo”, “A máquina de fazer coisas” e “O amanhã não está à venda” (publicado como e-book gratuito), e o que dá título ao livro, A Vida não é útil, onde ele retoma suas reflexões e discursos gerados em meio à pandemia, criticando nossa equivocada noção de humanidade. Suas reflexões provocadas pela pandemia se materializaram no livro “O Amanhã não está à venda”, escrito durante o inicio do confinamento, e no qual o autor tece críticas assertivas ao comportamento humano destrutivo no planeta. Mas Krenak se tornou um best-seller desde quando publicou no ano passado seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, que já vendeu mais de 50 mil cópias no Brasil e está sendo traduzido para o inglês, francês, espanhol, italiano e alemão.

Há décadas suas contribuições têm sido fundamentais para a história do país. Ailton Alves Lacerda Krenak (1953) é considerado uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro, inclusive reconhecido internacionalmente. Ambientalista, escritor e líder indígena, pertencente à etnia Krenak [também grafada como Crenaque], na década de 1970, aos 17 anos, mudou-se com sua família para o estado do Paraná, onde se alfabetizou e se tornou produtor gráfico e jornalista. Na década seguinte começou a se dedicar exclusivamente ao movimento indígena. Em 1985, fundou a organização não governamental Núcleo de Cultura Indígena. Ele também teve emenda popular assegurando sua participação no Congresso Nacional do Brasil para o processo constituinte em 1986, e depois  participou da Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição Brasileira de 1988.

Tinta preta do jenipapo

Aliás, há exatos 33 anos, em setembro de 1987, em plena Assembleia Nacional Constituinte, Krenak protagonizou uma das cenas mais emblemáticas da ocasião: em discurso na tribuna, pintou o rosto com a tinta preta do jenipapo, segundo o tradicional costume indígena brasileiro, para protestar contra o que considerava um retrocesso na luta pelos direitos dos índios brasileiros. No final dessa década que foi fundamental para a democracia no país, ele também participou da fundação da União dos Povos Indígenas, organização que visa a representação dos interesses indígenas dentro do cenário nacional, e também participou da Aliança dos Povos da Floresta, movimento que visa o estabelecimento de reservas naturais na Amazônia onde fosse possível a subsistência econômica.

Seu prestígio e seu trabalho incessante pelas causas que defende levaram-lhe, entre 2003 e 2010, a ser assessor especial do Governo de Minas Gerais para assuntos indígenas. Quatro anos depois ele foi um dos palestrantes do seminário internacional Os Mil Nomes de Gaia, ocorrido no Rio de Janeiro sob organização  de Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo do Museu Nacional, e Deborah Danowski, filosofa da PUC/Rio. Mas em 2016 veio a consagração quando a Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) concedeu a Krenak o título de Professor Doutor Honoris Causa, em reconhecimento pela sua importância na luta pelos direitos dos povos indígenas e pelas causas ambientais no país. Nesta mesma universidade, ele lecionou as disciplinas “Cultura e História dos Povos Indígenas” e “Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais”, ambos em cursos de especialização.

Memória ancestral

Em “A vida não é útil”, a pandemia, a derrocada do capitalismo e os danos causados pelo aquecimento global atravessam todo o livro. Crítico mordaz do “antigo normal”, ele não deixa por menos e dispara: “Nós poderíamos colocar todos os dirigentes do Banco Central em um cofre gigante e deixá-los vivendo lá, com a economia deles. Ninguém come dinheiro“. Ainda que adaptadas para textos, sua oralidade deixa sua marca no livro. Sua escrita parece conversar, falar diretamente a nós leitores como se fosse um amigo sábio apontando, lembrando, reforçando urgências, necessidades, alertando todos nós sobre o consumismo compulsivo e descontrolado que assola a humanidade há décadas. Krenak também questiona a ideia da sustentabilidade, vista por muitos como uma panaceia. E nos lembra da necessidade de escutarmos a “memória ancestral” como faziam os povos originários que pensam nas florestas como entidades. O mundo está em suspensão, ainda pede recolhimento, silêncio. “A proposta de desacelerar nosso uso de recursos naturais pode sugerir a ideia de adiar o fim do mundo, mas em alguns lugares, esse fim já aconteceu […]. “Ah, mas isso é muito apocalíptico, ele está apavorando a gente!” Na verdade, estou dando notícias velhas. Inclusive nas religiões dos brancos, na cosmovisão dos brancos também já houve um fim de mundo, [mas] eles olham para nós com estranhamento quando falamos disso porque não têm memória.”

Desenvolver X envolver

Aos 67 anos, Krenak segue resistindo, e entre um livro e outro vive uma intensa agenda de palestras, entrevistas e eventos. De sua aldeia às margens do rio Doce, em Minas Gerais, ela reverbera no Brasil e no mundo suas ideias e sonhos falando da cosmovisão dos povos indígenas. Ele é muito objetivo quando afirma que a pandemia é uma resposta da Terra à forma como o ser humano, a sociedade vem consumindo o planeta. “Se essa tragédia serve para alguma coisa é mostrar quem nós somos. É para nós refletirmos e prestar atenção ao sentido do que venha mesmo ser humano.  E não sei se vamos sair dessa experiência da mesma maneira que entramos. Tomara que não.

Ele nos convida a preservar nossa integridade, nossa ligação cósmica. “Temos que parar de nos desenvolver e nos envolver”. E reforça o que essa pandemia trouxe a todas e todos – independente de raça, credo, gênero, se é rico ou pobre – uma igualdade de risco, democrática. Krenak nos lembra que o vírus não atinge animais ou plantas, mas apenas os humanos, as pessoas. “Nós não estamos com nada, essa é a declaração da Terra”. A Terra pode nos desligar tirando nosso ar. “Ou você produz condições para se manter vivo ou produz as condições para morrer”. É como diz o velho ditado popular, “a vida é como um jogo de xadrez, ao final Rei e peão vão para a mesma caixa”.

Em tempo. Dias atrás, a União Brasileira de Escritores (UBE) elegeu Ailton Krenak como intelectual do ano, lhe concedendo o troféu Juca Pato, conferido anualmente a personalidades que, havendo publicado livro de repercussão nacional no ano anterior, tenham se destacado em qualquer área de conhecimento e contribuído para o desenvolvimento e prestígio do país, na defesa dos valores democráticos. A entrega do Troféu Juca Pato será realizada no mês de dezembro, em local ainda a ser definido. Nos últimos anos, condecorou nomes como Ignácio de Loyola Brandão e Milton Hatoum. De uma coisa eu tenho certeza. A existência de Ailton Krenak com suas ideias para adiar o fim do mundo, dizendo que o amanhã não está à venda e que não se come dinheiro é fundamental, é mais que útil. Significa pensar e agir em prol da humanidade, do planeta, da vida. Krenak ecoa a poesia de Caetano Veloso na música “Um índio”. Nos surpreenderemos com o óbvio. E conclui, “quando aparecer um deserto, o atravesse”.

Jurandy Valença, setembro de 2020