A maternidade desromantizada é a maternidade em que nos percebemos sujeitos de trocas, de construção de símbolos e de convívios, em que a ética do cuidado é recíproca.
Estamos em dívida com os nossos pares no planeta. Em determinados momentos, podemos, inclusive, nos perguntar quem, de fato, seria a praga que coloca em risco a existência na Terra. Mas, tão logo, podemos aludir às reflexões de Aílton Krenak, quando este nos lembra que, em verdade, a pandemia que nos assola há mais de um ano não ataca animais, mas fundamentalmente esta que chamamos de espécie com o poder sobre as outras: os humanos. E, nesse sentido, é interessante pensar nossa relação com a “Mãe Natureza”, com a Pachamama.
Como pensar a relação do humano com a natureza? Aliás, faz sentido pensar nessa relação como uma dicotomia? Somos algo separado da natureza? Não seria corroborar com a ideia de superioridade humana em relação a outros seres no planeta nos colocarmos como um outro acontecimento em relação ao “nosso” meio? O meio é nosso ou fazemos parte e, portanto, somos também meio?
Estamos em dívida com os nossos pares no planeta. Em determinados momentos, podemos, inclusive, nos perguntar quem, de fato, seria a praga que coloca em risco a existência na Terra. Mas, tão logo, podemos aludir às reflexões de Aílton Krenak, quando este nos lembra que, em verdade, a pandemia que nos assola há mais de um ano não ataca animais, mas fundamentalmente esta que chamamos de espécie com o poder sobre as outras: os humanos. E, nesse sentido, é interessante pensar nossa relação com a “Mãe Natureza”, com a Pachamama.
Primeiro, para alertar que, se a Terra é nossa mãe, somos, de certo modo, filhos e filhas ingratos. Em segundo, para, então, desmistificar a ideia de que mãe ama incondicionalmente, já que, podemos dizer que a Pachamama tem dado evidentes sinais de esgotamento em relação à nossa ingratidão e tem resolvido dar o troco, sistematicamente.
A racionalização do pensamento, em muitos sentidos, tem sido o ingrediente central de muitas dos binarismos criados, incluída aí a dicotomia superiores X inferiores. Podemos remontar a fase de preparação para o capitalismo, em que a discussão da separação entre corpo e alma fez com que nós, humanos, por muito tempo desprezássemos o corpo a partir da percepção de que a nós, superiores e detentores de alma, estaria reservada a vida em um Paraíso espiritual. Essa ideia permeou, e ainda persiste, ao fazer, então, de todos os outros seres viventes apenas corpo. Assim, se são apenas corpo, não deveríamos nos preocupar com o convívio a todos os viventes, mas ao controle e uso a partir de nossas necessidades sem nos preocuparmos se estes sofrem, como sofrem, porquê sofrem e, até mesmo, não ligando se sofrem. Deste ser escolhido, estruturou-se a ideia de usufruto humano como direito a tudo o mais que se configurou como meio.
Posteriormente, uma mudança nessa compreensão filosófica da vida humana ocorreu e tudo passou a ser matéria, corpo. Então, outras questões passaram a ser enfrentadas: de defesa de que os animais também deveriam ser respeitados e como detentores de sentidos; e aos que defendiam que, assim como haveria a seleção natural no meio animal, assim o deveria sê-lo entre os humanos. Dessa última concepção, foram desenvolvidas as ideias eugenistas que buscaram sustentar cientificamente a hierarquia e desigualdades entre humanos. Dessas ideias, muitas foram as consequências e discussões: se há direitos da natureza e dos animais ou se apenas humanos seriam sujeitos de direitos – e, pelo sistema moderno colonial, a classificação pela racialização de diferentes grupos humanos, também constituiu uma hierarquia intra-humana, criando os grupos menos humanos, ou sub-humanos. Esse foi a base de pensamento racionalizada imbuída no racismo.
Na história da filosofia ocidental são constantes as reflexões e limitações a direitos aos humanos, considerando todos os outros seres viventes como meras máquinas, como considerava Descartes; e mesmo que alguns humanos não deveriam ter direito a pactuar do contrato social. Essa parece uma discussão um pouco desconexa, mas que tem todo o sentido quando pensamos em discutir direitos da natureza. Ora, há os que questionam esse direito com argumento de que a Terra não teria como exigir esses direitos, não seria uma reclamante. Para muitos juristas e ativistas da causa ambiental, esse não pode ser um argumento sustentável, tendo em vista que garantimos direitos a muitos humanos que não tem condições de reclamarem seus direitos, mas que compreendemos que precisamos preservá-los como exercício de dignidade.
Pachamama ou “Mãe Terra” tem sido símbolo e deidade de povos andinos cada vez mais aludida e reivindicada nas discussões de políticas ambientais. De uma relação com a fecundidade e à vida e do poder de engendramento, a mãe Terra tem sido cada vez mais discutida e compreendida como sujeita de direitos. E já não era sem tempo. Mais do que uma relação de tutela e de poder sobre a natureza, ou seja, a ideia de “bem natural” enquanto propriedade, essa concepção é permeada pela discussão ética e de reconhecimento da relação horizontal que temos com o que considerávamos meio. Infelizmente, não estamos falando aqui de uma concepção majoritária. Mas mesmo entre os campos que ampla e historicamente se posicionam no campo da política ambiental, muito se tem avançado. Como aponta Eduardo Gudynas, essa “é uma demanda ambiciosa, mas indispensável, dada a crescente degradação ecológica que vive o planeta em geral e a América Latina em particular. Não há dúvida de que existem avanços na compreensão da questão ecológica e na promoção de leis e instituições para abordá-la. Mas também é preciso reconhecer que o resultado tem sido insuficiente”. Este é um conflito ético que devemos enfrentar. E quando falo em ética, não estou falando de moral, como sempre são confundidos. Mas de repensar valores e práticas, de inverter funcionamentos sistêmicos, modelos de produção e relação, se queremos permanecer vivos. Daí, então, se perceber parte e deixar de ser o filho mimado que bate o pé quando faz birra por algo. Os seres com os quais convivemos são tão partícipes quanto todos nós, com tantos direitos de vida sobre esse solo quanto nós. E é importante ressaltar que essa outra ética incorporada deve ser despida de qualquer ideia folclórica sobre essa filosofia e outro modo de ver e viver o mundo.
Assim, quando pensamos em “mãe Terra” precisamos desmistificar essa ideia de maternidade inserida no contexto patriarcal, masculino e violento, como uma persona em que a existência se encerra em nos servir e estar à disposição dos nossos desejos. Mas, pensarmos a incorporação dessas outras percepções como modelos de convivência do comum e do compartilhamento, se colocando frente a modelos exploratórios e depredatórios, que tem adoecido o planeta e consequentemente a todos nós. Essa é uma concepção de mundo que se contrapõe a financeirização, economização da vida, que é um modelo de morte e extinção. Com isso, não significa uma defesa da “mãe Terra” sob as ideias paternalistas ou sob os interesses egoicos que possamos ter. A maternidade desromantizada é a maternidade em que nos percebemos sujeitos de trocas, de construção de símbolos e de convívios, em que a ética do cuidado é recíproca. Nesse sentido, precisamos subverter nossa compreensão de vida e de viver, percebendo que só somos indivíduos no comum. Ou seja, constituir-se sob uma ética de cooperação, em que o consumo desenfreado precisa, e é, barrado, em que a tomada de recursos naturais seja como fonte de vida e do que é necessário; e não para a acumulação e consumo ilimitados. Uma relação de troca e soma.