“Todas as grandes coisas são difíceis e raras”.
[Spinoza]
A próxima edição da Festa Literária Internacional de Paraty [RJ], a FLIP, marcada para acontecer entre os dias 29 de julho e 2 de agosto de 2020, já está causando celeuma no meio literário desde agora. A polêmica é a escolha da autora americana Elizabeth Bishop [1911-1979] para ser a homenageada. Não há como negar a sua importância para a literatura mundial. Considerada uma das maiores poetas do século 20, a americana será a primeira estrangeira a receber tal destaque no evento, mas a opção não foi bem recebida, devido aos elogios ao golpe de 1964 e duras críticas ao Brasil feitas por ela e reveladas na sua correspondência. Bishop ganhou dois dos principais prêmios literários dos Estados Unidos: o Pulitzer, em 1956; e o National Book Award, em 1970. Foi antes de ganhar o primeiro prêmio [e um dos mais importantes do mundo literário], que ela aportou em Santos com a intenção de permanecer duas semanas no Brasil, mas acabou se apaixonando pelo País e pela arquiteta Lota de Macedo Soares (1910-1967), e viveu aqui por 15 anos, entre as cidades do Rio de Janeiro, Petrópolis e Ouro Preto [MG]. O romance com Lota originou o livro “Flores Raras e Banalíssimas”, da carioca Carmen L. de Oliveira, que por sua vez foi usado como base do belíssimo filme “Flores Raras” (2013), de Bruno Barreto, que teve Gloria Pires interpretando Lota, a grande paixão de Bishop.
Criada em 2003, a FLIP é uma das principais festas/eventos literários do mundo. Foi fundada pela britânica Liz Calder, amiga pessoal da bilionária J.K. Rowling, autora da série de livros “Harry Potter”. Foi Liz que apostou na carreira da então desconhecida autora e ajudou a lançá-la pela editora Bloomsbury na segunda metade da década de 1990. Desde sua primeira edição, a FLIP já trouxe ao Brasil escritores estrangeiros convidados como Eric Hobsbawn, Toni Morrison, Julian Barnes, Amós Oz, Nadine Gordimer, Don DeLillo, Martin Amis, Paul Auster, Enrique Villa-Matas, Salman Rushdie, J.M. Coetzee, entre outros medalhões da literatura mundial.
Mas há dias estou pensando na escolha da Bishop para ser a homenageada da FLIP 2020. De imediato pensei: poxa, uma estrangeira? Poderia ter sido além dela as brasileiras Orides Fontela, Carolina Maria de Jesus, Cecilia Meireles ou a Raquel de Queiroz. Sem esquecer que nem Erico Verissimo e nem Haroldo de Campos foram lembrados até hoje. Mistérios. Não vou me debruçar aqui sobre as opiniões políticas de Bishop, nem sobre os anos que morou no Brasil. Para mim essa escolha tem outras motivações$, que incluem que$tõe$ de marketing e venda$. Vamos aos fatos.
Desde sua criação esses são os autores e autoras que a FLIP homenageou:
2003 – Vinicius de Moraes
2004 – Guimarães Rosa
2005 – Clarice Lispector
2006 – Jorge Amado
2007 – Nelson Rodrigues
2008 – Machado de Assis
2009 – Manuel Bandeira
2010 – Gilberto Freyre
2011 – Oswald de Andrade
2012 – Carlos Drummond de Andrade
2013 – Graciliano Ramos
2014 – Millôr Fernandes
2015 – Mário de Andrade
2016 – Ana Cristina Cesar
2017 – Lima Barreto
2018 – Hilda Hilst
2019 – Euclides da Cunha
2020 – Elizabeth Bishop
É evidente o quanto a editora Companhia das Letras, sem dúvida uma das três que mais admiro no país, tem influência nas escolhas dos homenageados. Basta ver que – inclusa a Bishop – os últimos cinco escritores ou poetas que foram tema do evento são editados por ela. Desde a criação da FLIP, dos 18 autores e autoras que foram homenageados, apenas quatro foram mulheres, incluindo a próxima escolhida, a americana Bishop. E desses todos, metade são editados pela Companhia das Letras. Mistérios.
Lembro também que foi com a edição comandada por Josélia Aguiar em 2018, dedicada a Hilda Hilst, que a FLIP decidiu homenagear autores fora do cânone literário brasileiro. Aliás, desde sua criação por Liz Calder, o evento só teve três mulheres à frente da curadoria: a editora Ruth Lanna; Josélia Aguiar, atual diretora da Biblioteca Mário de Andrade e autora da premiada biografia de Jorge Amado; e Fernanda Diamant, formada em Filosofia pela USP e uma das fundadoras da excelente revista de literatura Quatro Cinco Um. Até então foram apenas homens convidados para a curadoria do evento, entre eles os jornalistas Cassiano Elek Machado e Manuel da Costa Pinto; o editor da Todavia, Flávio Moura; e o Jornalista Paulo Werneck, que assim como Mouras foi curador três vezes. Responsável por conduzir a próxima edição, ao que parece, Fernanda cumpre o que já é uma tradição no evento: de ter seus curadores reconduzidos pelo menos uma vez ao cargo.
Encontrei em uma festa em outubro passado o Mauro Munhoz, diretor geral e artístico da FLIP, e perguntei – como quem não queria nada – quem seria o próximo nome de 2020; claro que ele educadamente disse que ainda estava em discussão e tal e coisa. Mas lembro que surgiu na conversa o nome do João Cabral de Melo Neto, que particularmente acho que já deveria ter sido homenageado há tempos, quiçá será em 2021. Pelas estatísticas, parece que desde 2015 se estabeleceu que um ano seria um homem homenageado e no outro ano uma mulher. Por isso lembrei que, como no próximo ano seria a priori uma mulher, imediatamente falei para o Mauro que deveriam pensar seriamente na poeta paulista Orides Fontela, que coincidentemente nasceu no mesmo dia que Hilda Hilst [21 de abril], e morreu há mais de 20 anos. Tal como Hilda, Orides não era e ainda não é – infelizmente – digerida pelo cânone. Ambas foram autoras “marginais”, outsiders, mas que deixaram uma marca inconfundível na literatura brasileira, e reforçaram em suas respectivas obras a inadequação ao mundo que sentiam e viviam.
Mas mistérios à parte, vale lembrar que a obra de Bishop é publicada no Brasil pela Companhia das Letras, que já lançou por aqui “Uma Arte: As Cartas de Elizabeth Bishop” (1995), “Poemas Escolhidos” (2012) e “Prosa” (2014). Quiçá, em breve, não tenhamos também publicada pela editora a biografia da autora americana.
Divagações à parte, parafraseando Spinoza na epígrafe do texto, realmente parece que tem sido difícil e raro ter mais mulheres – sejam homenageadas ou curadoras na FLIP – como também ter outra editora brasileira que publique escritores ou escritoras que sejam tema do evento. Não foi dessa vez, mas fica aqui dito que Orides Fontela merece ser redescoberta e que o público precisa mergulhar no rigor de sua escrita, no desconforto e nos prazeres que ela proporciona. Acabo aqui meu texto com esse poema lindo dela, tão belo e lúcido.
“Fala”
Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.
Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.
Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.
(Toda palavra é crueldade.)