Susan Sontag morreu no mesmo ano que Hilda Hilst se foi. Esse fato surgiu enquanto escrevia sobre o lançamento nessa semana – pela editora Companhia das Letras – da biografia da escritora norte-americana nascida em Nova York, uma das principais intelectuais americanas. Benjamin Moser, também biógrafo de Clarice Lispector, passou sete anos escrevendo o livro, um calhamaço de 800 páginas que narra a vida de Sontag desde seu nascimento em 1933, até ser um símbolo cultural, um ícone da intelectualidade do século 20. Para a empreitada, ele entrevistou cerca de 600 pessoas, muitas delas mais de uma vez.
Bonita, sedutora, extremamente culta, durante sua vida se relacionou com homens e mulheres, embora seus relacionamentos mais importantes tenham sido com mulheres. Sontag cresceu em Tucson, no Arizona e na adolescência mudou-se para Los Angeles, onde fez o colegial e onde conheceu pessoalmente, em 1947, o autor de um de seus livros prediletos, Thomas Mann, autor da obra-prima “A Montanha Mágica”. Fez doutorado em Harvard, e aos 17 anos, casa com Philip Rieff, de quem divorciou-se na mesma década, e com quem teve seu filho David Rieff, que organizou seus diários publicados no Brasil em dois volumes pela mesma editora que lança sua biografia. Morreu no dia 28 de dezembro, a exato um mês de completar 72 anos, na mesma cidade onde nasceu, vítima de leucemia.
Ao longo de sua carreira, Sontag lançou romances, contos, peças de teatro e diversos ensaios, alguns deles verdadeiras obras-primas e referências incontornáveis da literatura mundial. Seus livros foram traduzidos para mais de 30 idiomas. E não obstante tudo isso, ela também escreveu e dirigiu quatro filmes e esteve à frente de algumas produções teatrais. Ativista dos direitos humanos durante quase toda sua vida, presidiu o American Center of PEN (1987-1989), uma organização internacional de escritores dedicada à liberdade de expressão, na qual liderou uma série de campanhas a favor de escritores presos ou perseguidos.
No começo da década de 1990, mudou-se para Sarajevo, na Bósnia-Herzegóvina, onde passou anos e até recebeu o título de cidadã honorária (1996). Em seu primeiro ano na capital fez sua última produção teatral, Esperando Godot, de Samuel Beckett. Entre outros prêmios de sua carreira, recebeu o National Book Critics Circle Award (1978), o National Book Award (2000), o Jerusalem Prize (2001), o Peace Prize do German Book Trade (2003) e o Prince of Asturias Prize (2003). Contrária à guerra, foi uma das primeiras a discordar da política norte-americana pós 11 de setembro (2001), em um controverso ensaio publicado na revista New Yorker
Falecida há 15 anos, seu legado é indiscutível. Moser mergulha profundamente na vida pessoal de Sontag e em seu trabalho, explorando escritos publicados e não publicados e analisa as influências emocionais, intelectuais e sociais da autora que atravessou, vivenciou e escreveu sobre eventos históricos do século 20, desde a Guerra do Vietnã até a queda do Muro de Berlim, o surgimento da aids e o cerco de Sarajevo. Moser também fala sobre seus casos famosos com Robert Kennedy, um dos irmãos mais novos do presidente assassinado dos Estados Unidos, John F. Kennedy; com o pintor Jasper Johns; com a dramaturga Maria Irene Fornés; com a coreógrafa Lucinda Childs; e a fotógrafa Annie Leibovitz, fotógrafa mundialmente renomada que retratava principalmente celebridades, e com a qual manteve um duradouro relacionamento que muitas vezes negava em público. Moser teve acesso aos arquivos de Sontag, mantidos na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, que reúne mais de 100 periódicos, milhares de cartas, fotografias de família, rascunhos de manuscritos e até mesmo seu computador pessoal.
Existe uma história engraçada sobre uma das marcas registradas da autora. Quando perguntavam a ela qual a sua característica mais conhecida, se era a de intelectual, ensaísta, romancista ou ativista política, ela respondia irônica que era a mecha branca em seus cabelos escuros. É que durante o primeiro tratamento de quimioterapia para o câncer em 1975 (doença que a levou à morte em 2004, aos 71 anos), Sontag não perdeu o cabelo, mas ficou completamente grisalha. Uma profissional – a pedido dela – tingiu tudo, menos uma tira do seu cabelo.
Particularmente acho a Susan Sontag uma das mulheres mais interessantes e inteligentes que já existiu. Sua vasta erudição, sua sede constante de conhecer e apreender o novo, sua influência intelectual e moral que vai de Hannah Arendt a Emil Cioran, passando por Roland Barthes, Walter Benjamin e Elias Canetti. Ela era finíssima e cultíssima. Considerava Nabokov, Borges, Beckett e Genet escritores de “alto escalão”, seus três filósofos prediletos eram Platão, Nietzsche e Wittgenstein, e tinha uma estreita amizade com ninguém menos que Joseph Brodsky e Herbert Marcuse. Amava Gerard Manley Hopkins e Gertrude Stein, e tinha paixão pela música erudita, que passava por Scriábin, Prokófiev, Bach, Cage, Chopin, Liszt, Beethoven, entre outros. Realmente ela era um espetáculo.
Em seus diários é possível ter acesso a uma Sontag mais intima, privada, muito além da persona pública. Sobre o casamento ela escreveu em 1956: “quem inventou o casamento foi um torturador astuto. É uma instituição destinada a embotar os sentimentos. Toda a questão do casamento se resume na repetição. O melhor que ele almeja é a criação de dependências fortes e mútuas”. Em relação ao sexo, escreveu em 1959 que “a experiência mais profunda, mais vivida, é ser fodida”. Um ano depois uma anotação em seu diário diz: “ler Memórias Póstumas de Brás Cuba”, de Machado de Assis, que muitos anos depois ela iria escrever o prefácio para uma reedição do livro em inglês. Ou saber do impacto da leitura de “A Fera na Selva”, de Henry James, que a deixou em depressão [esse livro é para mim um dos meus dez prediletos de toda a vida, quiçá está entre os três mais amados].
Eu só posso afirmar que a leitura da biografia de Susan Sontag é uma ótima pedida para o recesso do fim de ano. Vale a pena desbravar as 800 páginas, conhecer essa intelectual e mulher que chacoalhou a cultura mundial do século passado. Na verdade, parece que sua morte está mais viva do que nunca. Como ela mesmo escreveu em seu diário, em 1949, comentando que estava relendo Lucrécio, “a vida continua a viver. São os vivos, os vivos, os vivos que morrem”.