Não há saídas e construções positivas enquanto mulheres sejam vítimas de atrocidades.
O que era um dia, se tornou um mês. Hoje, falamos que março é mês das mulheres. Mesmo que sejamos nós as responsáveis pelo cuidado e trabalhos reprodutivos no mundo, força central para a sustentação sistêmica, para a manutenção da força de trabalho e, portanto, deveríamos ter a igualdade de reconhecimento todos os dias. A data se mantém importante porque, justamente, ainda estamos longe da igualdade com equidade. Ainda recebemos menos desempenhando as mesmas funções; ainda somos as que mais sofrem os impactos de oscilações e crises econômicas; estamos cada vez mais liderando famílias sozinhas, mesmo em situações precárias de vida. Quando adentramos à esfera política, temos de lidar com a violência e o feminicídio político. Vemos os números de violência doméstica e feminicídio aumentando, principalmente em tempos pandêmicos. Nosso país está no ranking de nações com altos índices de casamento de adolescentes – que sequer deveria ter esse nome, dado que meninas, ainda crianças, estão lidando com adultos em um matrimônio já iniciado em abuso e violência.
E diante de tudo isso, ainda lidamos com as guerras. E nas guerras, os crimes e violências contra as mulheres são sempre utilizados de forma política. Há diversos estudos que apontam o estupro como arma de guerra em conflitos pelo mundo. Em artigo para o site Conexão Planeta, a advogada e feminista Gabriela Garcia apresenta que em 1993 foi instalado o Tribunal Penal Internacional para analisar e julgar os crimes cometidos na guerra dos Balcãs. Já ali, como aponta a autora, o estupro e a escravização sexual foram debatidos e “elevados à condição de crimes contra a humanidade”. Em artigo para o “Estado da Arte”, em 2020, a filósofa Adriana Novaes apresentou uma importante reflexão sobre a violação dos corpos de mulheres como arma de guerra, crime historicamente invisibilizado. A estudiosa aponta que o estupro “foi reconhecimento como instrumento de genocídio e crime de guerra (pela primeira vez) por um tribunal internacional, (…) no julgamento de Jean-Paul Akayesy, líder local, atuante no genocídio dos Tutsis, em Ruanda. Durante esse primeiro tribunal estabelecido para julgar um genocidio, em janeiro de 1997, a juíza sul-africana Navanethem Pillay (…) tornou possível adicionar as acusações por estupro e violência sexual contra Akayesu” e definiu que seria considerado estupro a “invasão física de natureza sexual cometida em uma pessoa sob circunstâncias que são coercitivas. Violência sexual não é limitada à invasão física do corpo humano e pode incluir atos que não envolvem penetração ou mesmo contato físico”.
É importante falar sobre isso quando vivemos, hoje, no mundo, segundo a ONU, mais de 28 conflitos deflagrados, zonas de guerra, em que mulheres acabam sendo alvos da violência física da guerra, mas também do abuso sexual. E nesse contexto de guerra que vivemos, com destaque da mídia internacional para o conflito entre Rússia e Ucrânia, vimos um representante estadual de São Paulo ir até a zona de guerra e enviar áudios para amigos falando que ucranianas eram fáceis porque pobres. Ou seja, estamos falando do exercício da violência já no discurso, ao reduzir o drama vivido por essas mulheres como oportunidade para o assédio e o abuso.
Essas situações não são pequenas, não são coisas de identitárias que querem dividir a luta. Pelo contrário. Ao pensarmos o dia 08 de março, precisamos pensar que não é possível construir igualdade e equidade, futuros possíveis, se deixarmos uma parcela considerável do mundo para trás. Não há saídas e construções positivas enquanto mulheres sejam vítimas de atrocidades. Não há saídas positivas em um mundo tomado pelas guerras, por dinâmicas heteronormativas e masculinas, em que a força e o exercício do poder pela violência se sobrepõem ao diálogo, ao reconhecimento do outro como tão sujeito de direitos quanto nós mesmas.
O 8 de março é uma data de luta desde suas origens, quando mulheres socialistas reunidas perceberam ser fundamental estabelecer um marco que deixasse explícita a luta por igualdade e justiça como uma luta das mulheres. O 8 de março é uma data em que denunciamos a violência, nos celebramos e nos conectamos a processos fundamentais que garantam nossas autonomias e vidas. Em um 08 de março de 1917, milhares de mulheres russas decidiram se levantar contra a fome; e não há nada mais atual do que aquele movimento de 105 anos atrás. Vivemos um cenário de retorno da fome, em que os impactos são mais sentidos por mulheres; vivemos sob uma escalada do autoritarismo e da violência; sob um mundo em constante guerra. Mais do que nunca, precisamos beber da fonte daquelas mulheres russas, que em nada tem a ver com o atual déspota no poder naquele país – importante levantar o absurdo de boicote a artistas e escritores russos, com uma cultura rica de contribuições ao livre pensamento e a toda humanidade, como se o povo russo devesse responder pela ação de sanha pelo poder de seu governante atual. Assim fosse, o que teríamos que responder ao mundo? Ou o que os próprios estadunidenses, com seus governantes bombardeando o Iêmen, criando uma crise humanitária sem precedentes naquele território, teriam que responder ao mundo?
Que nesse 08 de março nos lembremos que as facetas sistêmicas opressoras não respeitam fronteiras e impactam a vida das mulheres de todo o mundo. Apenas retomando os sonhos internacionalistas, em uma perspectiva de comunidades globais, de respeito e vivências locais, é que daremos conta de construir o amanhã tão desejado. Mas é sempre bom lembrar que o amanhã começa hoje.