“Pensar globalmente, agir localmente”. A frase pode até ter se tornado um clichê, um senso comum, mas ainda carrega um intenso e importante significado diante dos desafios cotidianos para a manutenção da nossa existência no planeta. O responsável por ela foi o sociólogo alemão Ulrich Beck, em suas reflexões sobre o processo de globalização, e carrega ideias como participação, colaboração e solidariedade. Ou seja, pela aproximação e o encontro de culturas e identidades locais impulsionados pelo processo de globalização, era preciso, e para ele possível e necessário, não induzir generalizações, comparações e homogeneizações. Infelizmente, as dinâmicas da globalização neoliberal tem caminhado no sentido de apagamento, quando não dizimação, das riquezas e diversidades locais.
Em geral, a frase acaba sendo reduzida a ideia de “cada um fazer sua parte”. Pode até ser também. Mas, a redução é realizada ao extremo das práticas individualizadas. Ou seja, muitos, ao afirmá-la, reduzem-na a uma ideia de “consumo consciente”, como se esse por si só fosse a solução para o dilema histórico em que nos encontramos. Quando, sem dúvidas, seu propósito era o de pensar partes e processos aliados a uma estratégia do comum. Nesse sentido, reafirmá-la nas discussões sobre as relações que estabelecemos com a terra e animais não-humanos se torna importante não como uma algo preso a essa ação individual, que funcionaria mais como um desencargo de consciência, mas como impacto de nossas decisões e ações locais aliados a uma estratégia que compreende que a medida que um consumo consciente é importante ele, sozinho, não dá conta de uma dinâmica baseada em processos de exploração e modelos de produção no planeta.
Pense, por exemplo, em campanhas que tentam colocar sob nossa única responsabilidade o não desperdício de água, quando há imensa falta de investimento público para manutenção e melhorias na estrutura de distribuição e abastecimento de água, acarretando desperdícios de um dos recursos naturais mais valiosos da contemporaneidade. Em matéria do jornal “Bom dia, Brasil”, de 2016, foi apontado o desperdício de 31,8% de água pela SABESP, enquanto que a população economizava 30%. Esse volume equivale a 858 bilhões de litros de água tratada, algo como 5 represas do Guarapiranga, um dos maiores reservatórios da cidade de São Paulo, cheias. E a maioria, cerca de 2/3, desse desperdício foi em decorrência de vazamentos. A situação no restante do país não é das melhores. A média nacional de desperdício por vazamentos e ligações clandestinas fica em 38%. Mas há estados, como Roraima, em que o desperdício chegou a 75%! Alguns diriam que a resposta é a privatização do setor. Mas essa escritora já avisa, de antemão, que é totalmente contra privatização de áreas estratégicas – cada vez mais! – para a nossa existência. Estamos falando de água, e de qualquer recurso natural que seja.
Mas por que não basta apenas falar em mudarmos hábitos individualmente? Porque o modelo de exploração e de produção de materiais para consumirmos é extremamente predatório e responsável pela maior parte dos usos abusivos de recursos naturais que compreendemos cada vez mais como estratégicos. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 70% de toda a água consumida no mundo é utilizada para irrigação, pela pecuária e pela agricultura. A indústria realiza um consumo de água em 20%, ao passo que o consumo em residências é de cerca de 10%. Ou seja, se os modelos de exploração e produção dessas áreas mudassem, mesmo que pouco, e reduzissem em 10% seu consumo de água, seria possível dobrar a oferta de abastecimento de água para a população no mundo. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), 2,1 bilhões de pessoas não têm acesso à água potável em casa e 4,2 bilhões, o dobro, não têm saneamento seguro.
Ao apresentar esses dados, busco incentivar que estabeleçamos a seguinte reflexão: nossas estratégias individuais de redução de consumo devem estar aliadas a estratégias políticas coletivas e comunitárias, com impacto imediato local, mas mirando uma luta política mais ampla. Já sabemos que muito mais do que o necessário para o consumo é produzido em alimentos e vestimenta no mundo. Ou seja, a ação individual é importante desde que aliada a uma luta coletiva, tendo em vista que um modelo de produção predatório e trilionário continuará em amplo funcionamento, seguindo com a dizimação do Planeta – e, quando digo Planeta, estou falando não apenas de animais não-humanos, de plantas, rios e mares, estou falando da vida humana também. Em um mundo em que cada vez mais a especulação toma conta das dinâmicas econômicas, sociais e políticas, precisamos construir dinâmicas opostas, do comum, amplificando vozes e exigindo mudanças enérgicas em como se produz, se explora e se consome, tudo de modo articulado e conjunto.
E se começamos com um clichê, terminamos com outro: se o ditado diz que ‘uma andorinha só não faz verão’, por que você acha que agir sozinho vai resolver o problema do planeta? Por mais que alguns queiram e ideologias busquem capturar lutas transformadoras como essas, a de salvar nossa existência, humana e não-humana, a realidade e necessidade de uma visão de mundo e prática anticapitalistas pulula em nossa frente. É a única saída possível. Pensar e se articular a estratégias globais, agir e impactar em nossas realidades locais.