Em tempos de tanto ódio é comum ver que as pessoas comprometidas com uma visão de mundo transformadora e igualitária reivindicando o amor. A intelectual bell hooks fez formulações fundamentais em torno do amor e a ideia é que falemos mais sobre isso em outro texto. Mas aqui, hoje, e também mobilizando formulações de bell hooks, eu pretendo falar sobre a raiva.
Diferente do que podemos imaginar, a raiva não é o antônimo ou o par antagônico do amor. Muitos intelectuais negros formularam e formulam sobre a reivindicação da raiva como ferramenta motora para a construção de coalizões políticas, além de um sentimento que confere humanidade. A raiva estaria, portanto, mais relacionada a indignação, como formulou, também, Paulo Freire. Diante de massacres de indígenas, destruição do nosso planeta, conflitos mais latentes nas relações sociais, destruição de direitos ao trabalho e ao descanso da previdência, violência policial, acredito que a reivindicação da raiva como ferramenta de resistência é um ponto importante para refletirmos sobre uma indignação que precisa sair da superfície e espraiar ao mundo.
A intelectual Audre Lorde chamava a atenção para a utilização da raiva na luta contra as opressões. Em seu texto “Os usos da raiva: as mulheres reagem ao racismo”, fruto de apresentação em uma Conferência Nacional de Estudos sobre as Mulheres, em 1981, Lorde afirmou a raiva como uma reação, como fruto de um processo alimentado desde a mais tenra ideia, em que fomos ensinados e desenvolvemos técnicas para que ela não nos consumisse e tivéssemos possibilidades de sobrevivência.
A proposta de Audre Lorde, portanto, é a de que a raiva é a propiciadora de discussões diretas e criativas e que, portanto, não deveria ser evitada porque uma “fonte de energia” empoderadora. Para a pensadora, a raiva com precisão, repleta de energia e informação, tem a capacidade de gerar esclarecimento e libertação. A recusa da raiva é, também, fruto do patriarcado que reprime qualquer explosão nas mulheres. Portanto, abraçar a raiva e torná-la útil é uma “oposição direta a um sistema no qual o racismo e o machismo são pilares primordiais, estabelecidos e indispensáveis para o lucro”. Um alerta importante apresentado por Lorde foi da diferença entre raiva e ódio. Enquanto a raiva busca coalizões, propicia discussões diretas e criativas, tem como finalidade a mudança quando estabelecida entre semelhantes; o ódio é virulento, destrutivo e toma forma pela fúria dos opressores. Ou seja, o ódio opressor é o que produz guerras, causa mortes, violência policial e abusos de todo tipo. A raiva com precisão, pelo contrário, tem potencial de transformar diferença em poder, causa crescimento em seus processos de desconforto que estimulam mudanças.
Em bell hooks, a negação da raiva, ocasionando seu esquecimento e, portanto, também retirando o foco sistêmico, produz efeitos explosivos dessa raiva reprimida em nossas cotidianas. As humilhações e microagressões diárias são constantes e causam efeito. Reprimir a raiva é apresentado por hooks como uma exigência branca para que sejamos relativamente aceitos.
Assim, hooks propõe que rompamos com a ideia de que apenas ao seguirmos obedecendo padrões brancos de comportamento é que sobreviveremos no cotidiano, já que o efeito é contrário, como um mecanismo eficaz de apagamento, alienação, adoecimento e assimilação que esse processo produz. Reivindicar a raiva significa, portanto, reconstruir nossas subjetividades, nossos emocionais, nossas humanidades.
A raiva é uma catalisadora que desenvolve consciência, conhecimento crítico e politização. A demanda para que reprimamos a raiva tem como composição ideológica uma aceitação de pessoas negras vitimizadas, apáticas, em que negros se mantêm explorados, dependentes e subalternizados. Esse mecanismo tem como força acobertar possibilidades transformadoras, retardar ou interromper o ativismo, retirar a agência dos corpos negros. Se permitir a raiva significa tomar consciência de si e se fortalecer e construir coletivamente processos transformadores porque nos obriga a nos posicionar, a não permitir silêncio e passividade diante do racismo. Essa é uma questão que não podemos perder de vista: a raiva utilizada para a luta organizada é o motor que precisamos para realizarmos mudanças.