Duas mostras em cartaz na cidade de São Paulo lançam luz em meio às sombras nas quais vivemos em cavernas a céu aberto e cavernas indoor em tempos tão [sur]reais e políticos no qual Platão tateia às cegas tamanha tanta lucidez.
Uma delas abriu nesse último sábado, dia 6, na Pinacoteca, a exposição “Grada Kilomba: Desobediências Poéticas”, primeira individual no Brasil da artista portuguesa, que segue até 30 de setembro. Com curadoria de Jochen Volz e Valéria Piccoli, diretor geral e curadora-chefe do museu, respectivamente, a mostra apresenta quatro trabalhos que ocupam as quatro salas contíguas à exposição do acervo da produção artística brasileira do século XIX da Pinacoteca. De forte tom político e comprometido com as perspectivas das narrativas pós-coloniais, o conjunto de obras propõe uma espécie de restituição do lugar das vozes daqueles que foram silenciados ao longo da história.
A outra mostra é “Amanhã, Logo à Primeira Luz”, do Ivan Grilo, na Casa Triângulo, até 20 de julho, que reúne trabalhos do artista paulista que se situam na ambiguidade entre o relato íntimo e o manifesto político. Grilo, que já havia investigado em trabalhos anteriores lendas da realeza, como o português Sebastião e o congolês Chico Rei, agora inventa sua própria majestade, um soberano sem nome que habita um cenário de crise política [atemporal e tão atual]. As obras tratam de uma narrativa fantasiosa de um rei em derrocada por intermédio de objetos e instalações nos quais camadas de história e memória são revisitadas. Parte dos trabalhos de Grilo foram idealizados durante o período em que o artista esteve em residência em Nova Iorque, no AnnexB Art Residency, por isso tratam o deslocamento e o entendimento de migração como parte da pesquisa.
Grada Kilomba e Ivan Grilo
Ambas as mostras ecoaram muito em mim pela alta carga política exposta, narrada nas obras; pela atualidade dos temas que as duas colocam em cenário, em pauta; e porque ambas falam de história usando a ficção para causar a fricção. Mas, mais que tudo, porque são poéticas cada uma em sua escala, em sua respectiva potência, e no que transitam entre o público e o privado, entre o visto e o revisto.
A artista interdisciplinar Grada Kilomba nasceu em Lisboa, em 1968, e atualmente está radicada em Berlim. Sua trajetória artística reforça sua importância na arte contemporânea atual com sua obra tendo sido apresentada nas principais exposições e instituições do mundo como a 32ª Bienal de São Paulo; a Documenta 14, em Kassel; e a 10ª Bienal de Berlim para citar algumas recentes. Mas Toronto, Paris, Bruxelas, e claro, Lisboa, também já abrigaram obras dessa escritora e artista visual. Grada também é autora do livro “Plantation Memories” (2008) e co-editora de “Mythen, Subjekte, Masken” (2005), uma antologia interdisciplinar de estudos críticos da branquitude. Doutora em Filosofia pela Freie Universität Berlin, 2008, desde 2004 tem lecionado em várias universidades internacionais, como a Humboldt Universität Berlin, onde foi Professora Associada no Departamento de Gênero. E desde 2015, vem colaborando com o Maxim Gorki Theatre, em Berlim.
Fortemente influenciada pelo trabalho de Frantz Fanon (1925-1961), psiquiatra e filósofo da Martinica, começou a escrever e publicar sobre memória, trauma, psicanálise, feminismo negro e colonialismo, estendendo sua pesquisa à performance, encenação, coreografia e visualização das narrativas pós-coloniais. “Quem fala? Quem pode falar? Falar sobre o quê? E o que acontece quando falamos?” são questões permanentes em seus trabalhos. A autora começou seus estudos em Lisboa, onde era a única aluna negra do departamento de psicologia clínica e psicanálise de sua universidade. Ela já comentou em uma entrevista que o que a interessava “era explorar o trauma, a violência de como o racismo se torna uma normalidade que não é normal”.
Na Pinacoteca o público pode conferir a perturbadora e poética Illusions Vol. I, Narcissus and Echo (2017), instalação comissionada pela 32ª Bienal de São Paulo, em 2016, em forma de performance e, posteriormente, reconfigurada em uma instalação de vídeo que recebeu o prêmio do International Film Festival Rotterdam 2018, um aparato de um banco e microfones e que nela a artista aborda o mito de Narciso e de Eco para explorar as políticas de invisibilidade, questionando a noção de “branquitude” como componente imperativo nas memórias e realidades do mundo pós-colonial. Logo a seguir o visitante se depara com outra instalação que dialoga e desdobra outras questões levantadas pela anterior. Em Illusions Vol. II, Oedipus (2018), icomissionada pela 10ª Bienal de Berlim, Grada apresenta o mito de Édipo, que foi sentenciado à morte pelo próprio pai.
A mostra inclui também as obras “Illusions”, nas quais ela se utiliza da tradição oral africana para desempenhar o papel de contadora de histórias, ou griot, para recontar e encenar mitos greco-romanos. Os griots, que na tradição ancestral africana são os indivíduos que tinham o compromisso de preservar e transmitir histórias, fatos históricos e os conhecimentos e as canções de seu povo. A última instalação “Table of Goods”, de 2017, exibe uma instalação composta de um monte de terra, posicionado no centro da sala, que emerge do chão com pequenas porções de mercadorias coloniais como açúcar, café, cacau e chocolate. A obra traz, como eixo principal, a história transatlântica da escravatura e do pós-colonialismo, relembrando séculos de mortes de trabalhadores africanos escravizados em plantações para produzir os bens e os prazeres (the goods) das elites.
Grada Kilomba e Ivan Grilo, cada um a seu modo, falam sobre conhecimento, história, poder e violência. “Só quando transformamos as reconfigurações de poder – que significa quem pode falar e quem pode fazer perguntas e quais perguntas – então reconfiguramos o conhecimento. Na arte também produzimos conhecimento, ao criar trabalhos que gerem perguntas que não estavam lá antes (…). Para mim, um dos papéis importantes da criação de um trabalho de arte é desmantelar essas configurações de poder ao recontar histórias que pensávamos conhecer. Dar e criar outro sentido de quem somos. Nós somos muitos”, afirma Grada.
De um modo ou de outros, na memória, o passado muda o tempo todo, em um processo narrativo no qual a [des]construção é fundamental para criar – na ficção – a fricção. Freud já falava da memória como um processo de reescrita, de uma sopreposição de camadas, como um eterno e contínuo palimpsesto de imagens e [re]escritas. Grada embaralha categorias, classificações, linguagens e suportes criando um trabalho híbrido para dar forma à visualidade de suas narrativas. “Isso é importante para descolonizar o conhecimento. Gosto de confundir as plataformas, instituições, museus, festivais de literatura. O elemento de não saber como classificar um trabalho é muito relevante para as novas gerações de artistas, que criam novas linguagens, mais híbridas”, afirma. E a exposição na Pinacoteca responde a esta prática singular de artista, que poeticamente desobedece às várias disciplinas, perturbando as narrativas comuns das galerias do museu para criar o que ela nomeia de “nova e urgente linguagem descolonizada“.
A exposição integra a programação de 2019 da Pinacoteca, dedicada à relação entre arte e sociedade. Por meio dela, a instituição propõe examinar as dimensões sociais da prática artística, apresentando exposições que redimensionam a ideia de escultura social, cunhada pelo artista e ativista alemão Joseph Beuys. A mostra é acompanhada de um catálogo que inclui apresentação do diretor geral da Pinacoteca Jochen Volz, texto introdutório à Grada Kilomba pela escritora, pesquisadora e ativista Djamila Ribeiro e os roteiros das obras Illusions 1 e Illusions 2, ilustrados com stills dos respectivos vídeos e anotações feitas à mão pela artista.
Participação na 17ª FLIP
Grada Kilomba também é uma das presenças confirmadas na 17ª Flip, que que começou quarta e segue até domingo em Paraty, Rio de Janeiro. Grada é autora de “Memórias da Plantação: Episódios do racismo cotidiano”, que será lançado no Brasil durante a Festa Literária pela Editora Cobogó. O livro, publicado originalmente em 2008, é resultado de seu doutorado em Filosofia na Freie Universität de Berlim, no qual conta histórias de mulheres negras na capital alemã para discutir a atemporalidade do racismo cotidiano. Partindo do trabalho de intelectuais como Audre Lorde, Maya Angelou, Angela Davis e May Ayim, a autora pretende lutar contra o “déficit teórico” sobre o racismo, estabelecendo conexões entre raça, gênero e classe. A exposição Desobediências Poéticas, em cartaz na Pinacoteca, dialoga com o livro.
Serviço
Grada Kilomba: Desobediências Poéticas
Visitação: até 30 de setembro de 2019
De quarta a segunda, das 10h/17h30 – com permanência até 18h
Pinacoteca: Praça da Luz 2, São Paulo/SP
Ingressos: R$ 10,00 (entrada); R$ 5,00 (meia-entrada para estudantes com carteirinha). Menores de 10 anos e maiores de 60 são isentos de pagamento.*
Aos sábados, a entrada da Pina é gratuita para todos.
“Amanhã, Logo à Primeira Luz – Individual de Ivan Grilo
Visitação: até 20 de julho de 2019
Segunda a sábado, 10h/19h. Grátis.
Casa Triângulo. Rua Estados Unidos, 1324, Jardim Paulistano, São Paulo/SP