O mês de novembro ganhou um outro significado no Brasil. Hoje, é comum que o chamemos de “novembro negro” ou “mês da consciência negra”. Junto a isso, e principalmente com o crescente das demandas por direitos da população negra e de que é necessário ter uma atitude proativa em relação ao racismo, muitos são os discursos reacionários que falam em “dia da consciência humana” e, os mais conservadores, questionando a não existência de um “dia da consciência branca”. Não é por acaso que denomino esses discurso como reacionários e conservadores. O fato de não ter problema em afirmar isso é baseado na história. Apenas mentes sem memória, ou que tem como projeto político apagar a história, que comparam a opressão dos oprimidos com a vida dos opressores ou dos que vivem os privilégios de um histórico de opressão.
Sim, somos todos humanos. Contudo, na história humana, diversos foram os projetos políticos que buscaram hierarquizar as diferenças, transformando-as em desigualdades. Portanto, quando falamos em dia da consciência negra, estamos falando de um resgate genealógico e histórico. Genealógico no sentido de nos reconectarmos com nossas ancestralidades; e histórico no sentido de devolver a história negada e apagada de povos marginalizados.
Quando falamos em “consciência negra”, estamos falando de uma reconstrução de memória para que seja possível fortalecer lutas e mirar horizontes antirracistas em que todas as pessoas sejam, de fato, reconhecidas em suas humanidades. Ao olharmos para o quadro brasileiro, em que 75% das pessoas assassinadas no Brasil são negras, é inevitável que construamos pactuações, momentos de forte e profunda reflexão para que possamos combater essa realidade. Falamos em consciência negra porque todos os dias são sobrepostos por uma história do “vencedor”, demarcado na figura ocidental-branca, que nega racializar-se, a despeito de ter racializado todos os povos para que fosse possível, historicamente, construir discurso hegemônico de superioridade frente as diferenças.
A ideia de “consciência” é permeada por significados como “sentido”, “percepção” e “conhecimento”. Desse conjunto, muitas acepções podem ser desenvolvidas, seja no campo da psicologia, da medicina e da filosofia, perpassando ideias como conhecimento e compreensão sobre si; percepção sobre atos individuais de si mesmo e de outros; sistema de valores morais que se constituem para garantir um comportamento desejado, ou a desaprovação de comportamentos por si mesmo ou por outros; como conjunto de ideias de um grupo, a partir de questões em comum sobre o mundo e sobre o entorno; a capacidade do ser humano em perceber a si e ao mundo.
Diante de processos de alienação, de destruição de história e memória de povos e sociedades inteiras, a consciência se realiza por si só. Por isso, é preciso estabelecer processos em que contradições histórico-políticas, portanto sistêmicas, sejam apresentadas e escancaradas. Esse é um exercício fundamental para promovermos resgate e mudanças. Ao falarmos em consciência negra, precisamos levar em conta um processo que, obviamente, passa por uma descoberta do indivíduo sobre si e sua situação no mundo, mas que fundamentalmente está relacionado a esse processo de consciência coletiva, de grupo, potencializando autodefinição, autoconsciência e conscientização coletiva sobre os processos que subalternizam este grupo.
Assim, a “Consciência Negra” é um processo de impulsionamento coletivo que explicita as contradições e os sistemas de dominação aos quais estão submetidos a população negra. Deste modo, das várias estratégias construídas pelo movimento negro, reivindicar uma data, que hoje se configura como um mês todo, estabelece um marco de luta, de explicitamento das problemáticas, mas também da formulação de políticas, de fortalecimentos individuais e como grupo, de exaltação de símbolos que, mais do que simplesmente celebrados, se projetam no imaginário social subvertendo as representações estereotipadas e imagens de controle sobre a população negra.
Ao estabelecer Zumbi dos Palmares como o nome-símbolo do 20 de novembro, as imagens sendo projetadas são de resistência e positividade sobre o negro, além da denúncia diante da violência brutal do racismo que segue não inserindo negros e negras no cotidiano de políticas e do ser e viver o país.
O dia 20 de novembro é emblemático e foi estabelecido como data nacional em Janeiro de 2003. Importante para exaltar um líder de resistência não apenas em relação ao sistema escravocrata, mas também por construir uma estrutura política que ameaçava o modelo europeu monárquico vigente à época, cerca de 1690. No Quilombo de Palmares viviam negros e negras, indígenas e, também, pessoas brancas que para lá iam em busca de abrigo e que também se opunham à escravização. Se, hoje, falamos tanto na necessidade de compreendermos um país multirracial, Palmares pode ser lida como uma experiência de vanguarda de uma sociedade de reconhecimento nas diferenças. As diferenças não são o problema. Sempre seremos diferentes. Mas, o problema está quando essas diferenças são utilizadas para nos hierarquizar e manter uma estrutura de desiguais.
Enquanto houver desigualdades baseadas em hierarquias raciais, teremos o 20 de novembro e momentos e ações de promoção a reflexões e consciência. O dia 20 de novembro é um dia de todos que lutam por uma sociedade baseada na justiça, igualdade, liberdade e solidariedade. Antes de questionar o 20 de novembro, reflita sobre o país e reivindique para todos os direitos que, hoje, são negados para muitos.