Como pensar em futuros possíveis quando a barriga grita a fome?
Mulheres e Bem-Viver

Como pensar em futuros possíveis quando a barriga grita a fome?

Como pensar em futuros possíveis quando a barriga grita a fome?

A barriga tem que estar cheia para que possamos prospectar e esperançar o amanhã.

 

Ao buscar fixar uma grade, ou melhor, um itinerário reflexivo sobre futuros possíveis nessa coluna, já logo queria falar de propostas outras e diferentes, proposituras um tanto subversivas diante do modelo de sociedade em que vivemos, considerado inescapável. Mas percebi que antes de qualquer proposta, seria importante articular algumas premissas.

A primeira delas já reverberou no texto passado: percebermos que já existem vidas sendo vividas, mesmo que haja esforço notório e sistêmico para que sejam inviáveis e impossíveis. Pretos, pobres, indígenas, faveladas, não-bináries, trans estão construindo pelas bordas – ou como prefere dizer Jota Mombaça, pela “quebra”. 

A segunda é a pincelada desse texto: está certo que já vivemos no impossível, já insistimos em não morrer, apesar de quererem nos matar todo tempo. Mas como podemos começar a prospectar para além da luta pela sobrevivência. Não tenho certeza, mas acredito que Elisa Lucinda disse certa vez, em alguma entrevista, que precisamos mais do que sobreviver, havemos de viver. Mas como sair dessa dinâmica da resistência, ou seja, da reação, para uma dinâmica de vida proativa? Um dos princípios para isso foram bem trabalhados por outra gigante escritora brasileira: Carolina Maria da Jesus.

Eu poderia falar de diversos aspectos que fazem da escrita literária de Carolina Maria de Jesus das mais instigantes e interessantes no país. Mas um tema é irremediável em sua escrita: a fome. Pois bem. Como pensar em futuros possíveis quando a barriga grita a fome? Para que seja possível efabular, para que seja possível prospectar, para que seja possível vislumbrar saídas, a barriga precisa estar cheia. 

A situação alimentar no Brasil, hoje, é das piores. Segundo Sandra Chaves, vice-coordenadora da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), “nunca passamos por uma situação tão séria”. Nas palavras da própria, teríamos retornado a cenários alarmantes da fome comparáveis ao início dos anos 1970. Hoje, mais de 19 milhões de pessoas passam fome e estima-se que 55% da população sofre com a insegurança alimentar. A instabilidade econômica e a ausência de perspectivas articuladas a ausência de políticas de Estado efetivas – todas intencionalidades, diga-se de passagem – são as molas propulsoras para o abismo.

Em seus escritos, Carolina Maria de Jesus foi cirúrgica para o que estou tentando desenvolver aqui: “A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer.” A tremedeira da fome é incontrolável e desestabilizadora. Não há como sonhar quando o corpo treme por um pão. Não há como sonhar e cantar o possível quando o mínimo para a manutenção da vida é escasso ou inexistente. Você poderia pensar que pode ser difícil sonhar o futuro com fome, mas não impossível, haja vista a própria escritora por mim citada aqui. Mas estamos falando de regras e não de excepcionalidades. E mais do que isso, lembremos de Aílton Krenak nos dizendo da bobagem branco-ocidental de acharmos que o sofrimento necessariamente nos traga aprendizado. Queremos e podemos aprender de forma prazerosa, com todos saciados e atentos aos futuros que precisamos e havemos de construir. 

Obviamente, o cenário atual não paralisou quem aprendeu a viver em resistência. Muitas são as iniciativas que tem lutado contra o cenário de fome – uma dica, caso queira se somar a esses esforços, é a campanha Tem gente com fome, idealizada e coordenada pela Coalizão Negra por Direitos. Mas precisamos discutir uma outra agenda do Estado que promova a manutenção da vida humana e não-humana e a sustentabilidade planetária. 

Para um futuro possível, um primeiro princípio indiscutível e inegociável é o básico para vivermos: comida digna. Ou perpetuaremos a desigualdade, inclusive, na capacidade de sonhar e promover o amanhã.