Meu corpo é um quilombo!
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Meu corpo é um quilombo!

Meu corpo é um quilombo!

O sorriso, as manifestações culturais, a produção epistêmica, a reivindicação da negritude são formas de ser e existir negro que remetem à resistência de Ganga Zumba, Zumbi e Dandara.

 

Muitas foram as vezes que vi pessoas questionando a resistência construída historicamente pelas populações negra e indígena. Gente que acha que a resistência só acontece obedecendo a um modelo, em geral bem ocidental: aquela máxima de passeatas e cartazes em riste. Contudo, as maneiras de construir e consolidar resistência e lutas são variadas. Um dos projetos eugênicos no Brasil era embranquecer a população a tal ponto que teríamos pouco mais de 10% da população declarada negra e sequer previam a existência de indígenas no futuro. Isso não é uma divagação, mas presença em textos políticos e pseudo-filosóficos e pseudo-científicos de figuras importantes na historia brasileira e que compuseram o movimento eugenista no país. Para termos ideia de uma forma diversa de resistência, basta pensarmos que, a despeito desse desejo eugênico, hoje a população brasileira é composta por 54% de pessoas que se autodeclaram negras e a população indígena, durante boa parte dos anos 2000, manteve estabilidade em seu contingente, e houve tempos que apresentou aumento. 

Uma das formas mais conhecidas de resistência da população negra na história brasileira é o quilombo. Uma das mais importantes pensadoras sobre o quilombo no Brasil foi a historiadora Beatriz Nascimento, que refletiu sobre quilombos na perspectiva de estruturas de organização comunal, mas também apresentou suas ressignificações constantes, ao ponto de afirmar que corpos negros são também quilombos. 

Beatriz Nascimento foi uma intelectual, pesquisadora e ativista negra. Nascida em Sergipe, mudou com os pais para o Rio de Janeiro na década de 50. Iniciou os Estudos na Universidade Federal do Rio de Janeiro aos 28 anos, no curso de História e formou-se em 1971 e  pós graduou-se em 1981 pela Federal Fluminense. Coordenou o Grupo de Trabalho “André Rebouças” da Universidade Federal Fluminense, em 1974, no qual discutia com seus colegas universitários e pesquisadores negras a temática racial articulada à educação. Sua trajetória foi interrompida de modo abrupto e violento. Ela foi assassinada ao que defendia uma amiga, vítima de violência doméstica, do ex-companheiro, em 28 de Janeiro de 1995, na cidade do Rio de Janeiro.

Beatriz Nascimento marcou profundamente a “Quinzena do negro”, um encontro de negros universitários realizado na USP em 1974, com sua participação como conferencista sob o tema “Historiografia do Quilombo”, fruto de seu trabalho de pesquisa sobre sistemas alternativos de organização negra, estabelecendo paralelo ímpar entre a simbologia dos quilombos e as favelas brasileiras, bem como a ressignificação do quilombo em nossa história e sua relação entre a experiência da diáspora e escravização e corporeidade negra.

Para a estudiosa, as experiências da escravização e da colonização apresentam-se também no corpo e em nossas subjetividades. Corpo, para Beatriz Nascimento, também é espaço de luta, afirmações e resistências. Corpos também falam. A compreensão dessa estudiosa sobre o racismo foi a de que essa estrutura é um “emaranhado de sutilezas”. Ou seja, o racismo não pode ser analisado apenas pela externalidade, mas também em seus impactos nas subjetividades e corporeidades dos sujeitos e grupos subalternizados. A intelectual pontuou e acusou a contraditória relação entre violência e sutileza do racismo brasileiro, além de ter discutido os meandros psicológicos deste com a auto-negação e violência que perpetramos contra nós mesmos. Uma primorosa e muito bem articulada teoria de desagregação e exploração no Brasil. 

A pesquisadora referenciou-se em Clóvis Moura, e em suas observações posteriores, para constatar que o quilombo não foi apenas um local para fugir e resistir do sistema escravista, mas também um modelo de organização social, além de poder denotar outras simbologias, como que em constante transmutação. Assim, além de definir e reposicionar os estudos de comunidades quilombolas no Brasil, Beatriz Nascimento viajou para Angola em sua investigação historiográfica e de busca por este fio ancestral. A pesquisadora encontrou na nação bantu, na sociedade Imbangala, o primeiro conceito de quilombo. E, pelos estudos e observações tanto em Angola como no Brasil, ela classificou a conceituação e significação do “quilombo” em três períodos histórico-espaciais e que também refletiam organização e simbologia do quilombo: o quilombo como instituição africana; o quilombo como instituição no período colonial e Imperial no Brasil; e o quilombo como passagem para princípios ideológicos. Segundo a historiadora,  no final do século XIX que os quilombos ganharam este significado de instrumento ideológico contra a opressão racista. Houve uma “passagem da instituição em si para símbolo de resistência (…).” (1985). Por ter sido aquela instituição e sistema alternativo, justamente, que o quilombo ganhou a dimensão de símbolo de libertação e de disputa ideológica. Daí então que incorporou-se a utopia e o sonho por liberdade representadas nesta ideia de quilombo, que passou a ser um espaço de manutenção da identidade pessoal e histórica negra. Quilombo passou a ser sinônimo de povo negro.

O enfoque de Beatriz Nascimento era o de que o corpo resiste pelos movimentos estéticos, que se realizam como reinvenções de resistência que passam pela compreensão de reconstrução da autoestima destruída e negada ao povo negro. A pesquisadora entendia o corpo negro como aquele que refaz narrativas em movimento seja dançando sozinho, em grupo, pelos penteados afro, pelos bailes e agrupamentos em festas, pelas escolas de samba, territórios que ela também relaciona como quilombos. 

O corpo negro contemporâneo é um quilombo porque se reinventa e reposiciona, que resiste ao sair de casa todos os dias, enfrentando dinâmicas raciais hierárquicas em todos os movimentos que realiza, mas que segue combatendo os obstáculos encontrados. Esse movimento-corpo-quilombo, contudo, só se realiza pela construção coletiva, só resiste em encontro e soma. O sorriso, as manifestações culturais, a produção epistêmica, a reivindicação da negritude são formas de ser e existir negro que remetem à resistência de Ganga Zumba, Zumbi e Dandara. As reflexões da intelectual são ainda ricas e importantes aportes teóricos para a luta que nossa geração e outras ainda terão de travar diante do racismo. 


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