Mas, de onde vem essa história de um dia internacional das mulheres? Em geral, a história é um tanto romantizada: mulheres trabalhadoras de uma fábrica têxtil morreram em um incêndio provocado, após pararem o trabalho para demandar direitos. A história ganha outros contornos mais românticos: de que pelas cores de tingimento, a fumaça que teria saído das chaminés eram da cor lilás. Será?
Dia Internacional das Mulheres. Eu adicionaria “luta” nesse título. Essa data tem tomado contornos, no mínimo, curiosos. Em nossos trabalhos, recebemos cartas de nossos chefes, cards que, em geral, vem com alguma rosa vermelha como ilustração e algum trecho clichê sobre coragem, força e o cuidado que nós temos com o nosso entorno e que acham que estão retribuindo de algum modo com uma homenagem ainda recheada de machismo e estereótipos de gênero.
Um pouco de paciência será necessária nesse texto, adianto. Não tenho mais estômago para esses clichês de como somos especiais quando ainda somos a maioria entre os pobres no mundo, quando ainda recebemos, em média, 75% do salário de um homem, mesmo que exerçamos a mesmíssima função – e, no caso de mulheres, essa diferença salarial é mais gritante, recebendo cerca de 25% do que um homem branco que exerce o mesmo tipo de trabalho recebe. E esses não são chutes meus, nem mesmo dados inventados. Está tudo lá, em pesquisas do IPEA, um instituto de pesquisas avançadas renomado no país.
Será que quando mulheres começaram a discutir a necessidade de uma data internacional estavam preocupadas se ganhariam flores e comerciais ou se alcançaríamos direitos iguais? Veja só, com toda essa discrepância salarial, medicamentos que adquirem a marca “rosa”, ou seja, direcionados ao público feminino são mais caros do que produtos masculinos correspondentes. Uma pesquisa apresentada em 2017, do Mestrado Profissional em Comportamento do Consumidor em parceria com a InSearch, apresentou dados interessantes para refletirmos: mulheres pagam, em média, 12,3% a mais do que homens em produtos. No vestuário, essa diferença pode chegar a 17% e a 26% em brinquedos. Apenas porque são rosas. Há empresas que respondem ao questionamento sobre essas discrepâncias dizendo que alguns produtos para mulheres demandam mais tempo para preparo e mais profissionais. Será? Um barbeador, que em muitas vezes muda apenas a cor, pode ser até 20% mais caro para mulheres!
Então, será que em vez de comerciais de tevê dizendo obrigado porque somos responsabilizadas pelo cuidado familiar, o que nos expõe a uma sobrecarga de trabalho dupla, quiçá tripla, que tal discutirmos no 08 de março a igualdade salarial? O combate a precarização do trabalho feminino? A importância do trabalho doméstico feminino não remunerado para a sustentação da Economia e que, vamos combinar, já está na hora de ser remunerado?
Mas, de onde vem essa história de um dia internacional das mulheres? Em geral, a história é um tanto romantizada: mulheres trabalhadoras de uma fábrica têxtil morreram em um incêndio provocado, após pararem o trabalho para demandar direitos. A história ganha outros contornos mais românticos: de que pelas cores de tingimento, a fumaça que teria saído das chaminés eram da cor lilás. Será?
No livro “As origens e comemorações do dia internacional da mulher”, da profa. Ana Isabel Alvarez Gonzalez é muito elucidativo. A ideia do livro foi a de resgatar a biografia do dia das mulheres e reposicioná-lo como um dia de luta e não de homenagens apenas. As comemorações são fruto de uma série de acontecimentos, mas principalmente da compreensão das mulheres de que era importante demarcar um dia internacional de luta e resistência e, mais do que isso, por uma outra agenda política na sociedade. Então, mais do que pensar numa data, o dia precisa ser analisado por um contexto histórico, ideológico e político.
Em um período em que mulheres eram a maioria das trabalhadoras de indústrias têxteis e de muitas greves e manifestações por melhores salários e condições de trabalho, como no final do século XIX e início do século XX, alguns incêndios de fato ocorreram – o maior deles ocorreu em 25/03/1911, na fábrica Triangle Shirtwaist Company, apenas seis dias após a primeira comemoração do dia nos Estados Unidos. Contudo, a história romântica remete o dia a supostos incêndios ocorridos em 08/03/1857 nos Estados Unidos e 08/03/1908 na Espanha. Mas o estudo de Gonzalez aponta que essas datas caíram em domingos. Ora, seria estranho pensar em iniciar uma greve no único dia de descanso.
Desde 1909, o Partido Socialista dos Estados Unidos comemorava o dia das mulheres todo último domingo do mês de fevereiro. E, em 1910, houve a 2a Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, realizada em Copenhague, capital da Dinamarca. Nesse evento, a líder internacional do movimento de mulheres socialistas Clara Zetkin propôs um marco para aludir à luta realizada por mulheres trabalhadoras em todo o mundo por direitos. Na Rússia, adaptando seu calendário ao nosso, celebrava-se a data desde 1914, em 08 de março. Contudo, um evento marcou em definitivo o 08 de março como um dia das mulheres: foi quando, em 1917, trabalhadoras russas iniciaram uma greve por pão. Essa demanda das mulheres por alimentos deu início a um amplo processo de mobilizações em toda a Rússia, que culminou com a revolução de Outubro daquele ano. Assim, os comunistas e socialistas de outros países passaram a celebrar o 08 de março como uma data de luta das mulheres.
Após a 2a Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas foi criada e marcos institucionais de reconstrução, solidariedade e direitos passaram a ser celebrados. Assim, a organização incentivou mulheres dos países aliados e que lutaram contra os terrores fascistas e nazistas a se levantarem e comemorarem o Dia Internacional da Mulher, definindo o 08 de março como data luta por reconhecimento de direitos na nova ordem mundial que se estabelecia.
Veja só, eu não tenho nenhum problema com flores e bombons. Aliás, enquanto escrevo esse texto, há flores em minha mesa de trabalho e eu adoro chocolates. A questão que trago é de que como podemos reduzir essa data a homenagens quando ainda temos tanto por lutar. Claro, é inegável que avançamos muito. Basta pensarmos que até pouco tempo, uma parcela das mulheres não podiam trabalhar sem autorização – digo parcela, porque mulheres negras e indígenas sempre trabalharam no país, inclusive sob escravização e superexploração e assim ainda seguem, quando mulheres negras ainda representam mais de 60% do contingente de trabalhadores domésticas e de empresas terceirizadas no país. Mas é importante pensarmos que esses avanços e conquistas não foram alcançados com homenagens, flores sendo entregues. Pelo contrário. Esses avanços foram conquistados porque mulheres se levantaram em muitos lugares do mundo, a partir de seus contextos locais, em processos múltiplos e plurais de organização, mas sempre com o objetivo de serem consideradas sujeitas plenas de direitos e tão capazes quando os homens. Não se trata de uma proposta que pretende fazer de nós mulheres mais do que os homens, ou que estejamos demandando vingança. Não. O dia internacional de luta das mulheres existe para demandar que somos iguais, tão merecedoras de respeito e direitos quanto, que não somos frágeis, que não somos lascivas porque exercermos nossa sexualidade, mas que somos humanas. Pessoas. Iguais. Equânimes.
Pela luta de mulheres de minha família e de milhões de outras que, hoje, eu posso escrever e assinar com meu próprio nome, sem pseudônimos masculinos para ser publicado, mesmo que o mercado editorial e o mundo literário ainda precisem, e muito, discutir como as mulheres são representadas e o quanto são publicadas, lidas e criticadas com a mesma régua de respeito. Avançamos sim, mas ainda não é tempo para nos conformarmos. Ainda são mulheres que choram por seus filhos assassinados pela violência, ainda são mulheres que são assassinadas por serem mulheres e porque homens acham que são proprietários de nossos corpos e vidas. Ainda são mulheres que, em sua maioria, pensam no provimento dos filhos, das mães, das avós; ainda são mulheres que cuidam e são tão pouco cuidadas, realizando isso por si mesmas. Ainda são mulheres que sofrem assédio em ambiente de trabalho. Ainda são mulheres que estão, em sua maioria, na luta por creches; salários decentes ao professorado, já que são a maioria da categoria; por postos de saúde, já que atenção básica à saúde é um direito… básico. Ainda são mulheres que lutam por moradia, que defendem os rios e o direito a água, que defendem os oceanos, as matas tão fundamentais para que respiremos. E como respirar tem sido tão importante nesses tempos. Ainda são mulheres. Ainda precisamos de tempos mulheres. Acredito que seja essa a nossa resposta e saída viável se ainda queremos existir-mundo.
Esse é um dia de luta. Da luta de todas nós por todo o mundo.
Ps: Esse texto é dedicado, em especial, a todas as mulheres trabalhadoras da saúde que lutam diariamente pela vida de milhares de brasileiros a despeito da falta de medidas governamentais eficazes e necessárias na pandemia. É um texto também dedicado a todos que choram seus, agora, encantados em memória.
É realmente impressionante o tamanho do esforço que temos que fazer, somente pra ter o direito de existir, enquanto o homem se apropria do mundo como um direto intrínseco seu. E, ainda, como não mencionar, o aumento tão absurdo do feminicideo, apesar de, nosso país, termos a Lei Maria da Penha ainda vigente. A certeza da impunidade se deve pela idéia, disseminada desde os tempos antigos, de que somos cidadãs de segunda classe, portanto não merecedora de considerações e respeito. De Enquanto essa mentalidade não mudar, a gente vai continuar assistindo os crimes absurdos e covardes, todos os dias na tv, perpretados contra a mulher. Que tenhamos sempre força e coragem pra fazermos a nossa voz ecoar , umas através das outras.