Parafraseando a Bernadete, ou melhor, a Baby que era Consuelo, mas agora é do Brasil, todo dia é dia do índio. Estamos no mês que se comemora o “dia do índio”, mas não há nada para comemorar. Se a pandemia coloca em risco milhões de vidas em todo o mundo, imagine as vidas dos povos indígenas espalhados pelo planeta. Casos foram identificados no Xingu (PA) e também em Santa Cruz Cabrália, no sul da Bahia, em um índio Pataxó residente da aldeia Coroa Vermelha, a maior das oito aldeias dos Pataxó na região, com uma população de 5 mil indígenas. Uma jovem de 20 anos, da etnia Kokama, que trabalha como agente de saúde indígena na região da cidade de Santo Antônio do Içá (AM), também foi contaminada. A situação se torna mais grave quando os atendimentos de saúde aos indígenas, que são realizados pelos Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígena (Disei), vinculados à Sesai, do Ministério da Saúde, sofre com os cortes orçamentários promovidos pelo governo federal que, juntamente com a suspensão dos cubanos do programa Mais Médicos, gerou um apagão de saúde em comunidades indígenas em todo o país.
O problema aumenta quando idosos ou pessoas diabéticas que precisam de atendimento rápido em leitos de UTI, se encontram em uma situação extremamente delicada quando se trata de comunidades indígenas distantes de centros urbanos. Porque em casos de emergência, a Sesai oferecia deslocamento por barco ou avião a indígenas e com os cortes orçamentários essa estrutura está comprometida. Recentemente a BBC News Brasil mostrou que após saída de médicos cubanos do programa, as mortes de bebês indígenas cresceram 12% em 2019 em relação ao ano anterior. E isso se deve não só ao fim do convênio com o governo cubano, mas também – e principalmente – com as mudanças na gestão da saúde indígena promovidas pelo governo de Jair Bolsonaro. A tentativa de desmonte do sistema de saúde indígena iniciada no ano passado deixa todas essas comunidades vulneráveis e revela como o atual governo lida com a questão.
O cenário se complica ainda mais, já que muitas comunidades indígenas não possuem saneamento básico. Ademais, os protocolos que norteiam a pandemia nas grandes metrópoles e mesmo em pequenas cidades não se aplicam para as comunidades indígenas, para as etnias que vivem coletivamente. Também não podemos esquecer que para os indígenas a resposta imunológica ao contágio com o novo vírus é diferente em relação aos não indígenas. E nos últimos séculos, as doenças transmissíveis e virais foram um flagelo responsável pelo genocídio de várias etnias indígenas, como exemplo a varíola, que foi responsável pela morte de 20 mil pataxós nos séculos 16 e 17. Vale lembrar que já em 1908, o Brasil foi acusado no Congresso dos Americanistas de Viena de massacrar indígenas.
A terra desolada
É uma situação apocalíptica que me fez lembrar do sempre mordaz escritor norte-americano Ambrose Bierce, que em seu famoso “Dicionário do Diabo”, diz que o apocalipse é o “famoso livro em que São João Evangelista escondeu tudo o que sabia. As revelações são feitas pelos comentaristas, que não sabem de nada”. Pois é, não sabemos de nada do que virá no cenário global que será desvelado após a pandemia. A coisa tá tão calamitosa, que entre uma noite de sexta-feira e a manhã de um sábado desse abril 15 vulcões ao redor do mundo tiveram ejeção de cinzas, erupção ou lançamento de material incandescente, entre eles dois gigantes como o Popocatépetl, no México, e o Krakatoa, na Indonésia. Parece que esse mês tem reverberado a primeira frase do poema “A Terra Desolada”, de T.S.Eliot, abril é o mais cruel dos meses.
Mas em meio ao caos, ao “apocalipse”, existe alguns oásis, algumas iniciativas relevantes e fundamentais como a Biblioteca Comunitária Itaxi Mirim, em Paraty (RJ), que abriga um acervo diverso e potente de literatura da cultura indígena, e que está disponível para aproximadamente 40 famílias e 200 integrantes da aldeia. O espaço é a primeira biblioteca comunitária indígena do estado do Rio de Janeiro e integra a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC). A construção do espaço foi fruto da parceria dos indígenas com a Mar de Leitores, rede de bibliotecas comunitárias de Paraty que integra a RNBC. Criada em 2015, a Rede tem mais de 110 bibliotecas espalhadas nas regiões Norte, Nordeste e Sudeste para a formação de leitores e para a democratização do acesso ao livro e à leitura no país. Até o final do ano passado, ela contabilizava em média 23 mil atendimentos mensais diretos em suas bibliotecas, sendo que 1.200 são para indígenas. E recentemente, Ailton Krenak, uma das principais lideranças indígenas do país, lançou, junto à editora Companhia das Letras, o ebook gratuito “O amanhã não está à venda”, no qual reflete sobre a pandemia no Brasil e mundo. A obra é fruto do compilado de três entrevistas recentes que Krenak concedeu para três jornais, os brasileiros o Estado de Minas (MG), O Globo (RJ) e o jornal português Expresso.
Tem também a artista mineira Francélia Pereira, criou personagens voltados para a mitologia de etnias como a Tupi e a Guarani, unidos com ficção cientifica. Ela lançou a série de livros “Light Novel de Fantasia, Habitantes de Cosmos”, que ganhou destaque internacional com a personagem Artemísia. Apaixonada pelo mundo dos quadrinhos e pela mitologia grega, a artista começou a desenvolver seus projetos literários no final de 2013, que eram divulgados em seu blog. Mas com a grande procura do público novas edições dos contos foram lançados e sua primeira obra foi publicada em 2015, pela Editora Buriti. Hoje a serie conta com três livros Apocalipse, Artemísia e Nova Atlântida. Em 2018, o HQ “Artemísia – O Muiraquitã Original” foi indicado ao prêmio Ângelo Agostini, premiação tradicional de HQ’s no pais, na categoria melhor lançamento independente. Todas as obras são lançadas em formato físico e digital e encontram-se disponível no site de vendas on-line.
Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante
Segundo o pesquisador Rodrigo Luiz Simas de Aguiar, as profecias apocalípticas representam um importante aspecto da cosmologia indígena. Elas são parte inerente da religiosidade de diversas etnias e os mitos de destruição do mundo se mostram importantes elos que se entrelaçam com outros elementos cosmológicos na construção de sua própria mitologia. Ele afirma que muitas etnias de povos indígenas são formadas por categorias cosmológicas que mediam a relação entre seres humanos e não-humanos. Para os índios não existe distinção. Para eles ambos compartilham atributos que no mundo ocidental seriam exclusivos dos humanos. O que reforça o que o antropólogo Eduardo Viveiro de Castro diz, que é comum a muitos povos que “o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos.”
A vida ordinária, o cotidiano não dá conta em revelar a essência original de todas as coisas, pois essa essência está presente de maneira integral única e exclusivamente no paraíso mítico dessas etnias. Aguiar traça um interessante paralelo entre a cosmologia guarani e o mito da caverna de Platão. Para ele, “analogamente ao mito da caverna, para os Guarani os seres que habitam a terra são apenas uma imagem tênue, ou seja, o reflexo distorcido daqueles originais que habitam o paraíso”. Afinal, o núcleo básico do mito se equilibra entre a destruição da relação entre a imperfeição da condição terrena humana e a busca pelo modo perfeito, cujo modelo ideal é aquele presente de forma integral somente no paraíso.
São várias as comunidades indígenas das Américas que acreditam que os animais descendem dos humanos e não os humanos dos animais. Nas suas cosmogonias, no princípio tudo era humano. Ou mais que humano? Pós-humano? Os Yanomami, por exemplo, acreditam que o céu caiu sobre a terra e que o céu carregava uma floresta nas costas. Na verdade, para os Yanomami, como nos conta o seu xamã Davi Kopenawa, o céu caiu já por inúmeras vezes, redistribuindo esta humanidade comum a cada queda. Talvez essa pandemia, essa nova “queda” venha revelar um pós-humano, além dos avanços da tecnologia e da ciência, um novo humano. Um “pós-humano” mais voltado à ancestralidade, aos primórdios de si e do mundo. Não é o fim do mundo, é o fim de um mundo. Vale lembrar, que a palavra apocalipse significa revelação. Nesse novo mundo quiçá as palavras de Caetano Veloso possam ecoar e [re]apareça entre nós “um índio preservado em pleno corpo físico. Em todo sólido, todo gás e todo líquido. Em átomos, palavras, alma, cor. Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico”. E que “aquilo que nesse momento se revelará aos povos, surpreenderá a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto, quando terá sido o óbvio”.