Essas últimas semanas tenho lembrado muito de Hilda Hilst, cujos 90 anos do seu nascimento serão comemorados no próximo ano. Hilda morreu em 2004, mas sua obra reverbera até agora e continuará por tempos. Mas lembrei dela por quatro motivos. O primeiro foi um poema dela escrito há 45 anos, em plena ditadura militar, pertencente ao seu livro “Júbilo, Memória e Noviciado da Paixão”, e que é um dos que mais amo na vida; é da série Poemas aos Homens do Nosso Tempo, e eu bradaria esse poema em rede nacional – em horário nobre – para lembrar ao povo o que está acontecendo no país:
POEMAS AOS HOMENS DO NOSSO TEMPO
de cima do palanque
de cima da alta poltrona estofada
de cima da rampa
olhar de cima
LÍDERES, o povo
Não é paisagem
Nem mansa geografia
Para a voragem
Do vosso olho.
POVO. POLVO.
UM DIA.
O povo não é o rio
De mínimas águas
Sempre iguais.
Mais fundo, mais além
E por onde navegais
Uma nova canção
De um novo mundo.
E sem sorrir
Vos digo:
O povo não é
Esse pretenso ovo
Que fingis alisar,
Essa superfície
Que jamais castiga
Vossos dedos furtivos.
POVO. POLVO.
LÚCIDA VIGÍLIA.
UM DIA.
O segundo motivo foi o lançamento recente nos Estados Unidos da primeira coletânea de ensaios em inglês sobre sua obra, “Essays on Hilda Hilst: Between Brazil and World Literature”, organizada por Adam Morris e Bruno Carvalho. A coletânea reúne oito ensaios de acadêmicos da Europa, Estados Unidos e Brasil, além de trechos do livro “Fico Besta Quando me Entendem: Entrevistas com Hilda Hilst”, organizada por Cristiano Diniz. O terceiro motivo foi a profusão de montagens baseadas na produção teatral da autora paulista, que criou obras primas da língua portuguesa em prosa, poesia, teatro e crônicas, que foram encenadas recentemente em vários Estados do país. O quarto e último motivo é porque há semanas estou debruçado na edição dos diários que escrevi quando morei com Hilda, no começo da década de 1990. Mas essa história conto mais para adiante.
Em Belo Horizonte, Minas Gerais, foi encenado no final do mês passado o espetáculo “A Obscena Senhora H – Paixão e Obra de Hilda Hilst”, que participou do Festival BH de Teatro, com dramaturgia e encenação de Juarez Guimarães Dias e solo de Luciana Veloso, indicada ao Prêmio Sinparc de Artes Cênicas 2019 como Melhor Atriz pelo solo narrativo. A peça reconta a paixão da autora por seu primo Wilson Hilst, 20 anos mais novo, durante a criação da sua obra prima em prosa, “A Obscena Senhora D”. Em Curitiba, Paraná, entre o final de julho e começo desse mês foi apresentada a segunda temporada do monólogo ‘O Caderno Rosa da Senhora H’, baseada no livro ‘O Caderno Rosa’ de Lori Lamby”, de Hilda. A montagem da Boreal Companhia de Teatro apresentou duas personagens, a Lori Lamby, protagonista do livro, uma garota de oito anos que escreve histórias pornográficas em um diário cor-de-rosa; além da própria Hilda Hilst, que explica as motivações para escrever essa obra.
No começo do mês, no CCSP, o maior centro cultural da cidade de São Paulo, foi exibido o belíssimo filme-documentário “Hilda Hilst Pede Contato”, de Gabriela Greeb, dentro de uma retrospectiva em homenagem a Rui Poças, diretor de fotografia do filme e um dos mais renomados do cinema mundial, que esteve na ocasião para ministrar uma masterclass. E também em sampa, até 1º de setembro, o Teatro de Arena Eugênio Kusnet – no Centro da cidade – recebe o Festival Hilda Hilst, realizado pela Companhia Barco, com a participação de artistas e grupos convidados, e que reúne apresentações teatrais, shows, cortejo, oficinas e rodas de conversa. Todas as atividades têm entrada na modalidade “contribuição consciente”. O festival reúne montagens como “Osmo”, em cartaz há cinco anos com sessões e temporadas esporádicas, espetáculo baseado em conto de Hilda, um monologo protagonizado por Donizeti Mazonas sob a direção de Suzan Damasceno. Tem também “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, monólogo baseado no livro homônimo de Hilda, que remonta a 1999, quando atriz e diretora Bete Coelho e a atriz Iara Jamra se uniram para encenar o espetáculo. Vinte anos após esta primeira encenação, diretora e atriz retomam a estória da garota de oito anos de idade que escreve, secretamente, suas fantasias sexuais. E essa semana, dia 19 e 20, foi apresentada em Porto Alegre a peça “Obs.cenas”, baseada em textos de Hilda, dentro do projeto Cenas Mínimas, no Centro Cultural da UFRGS. O espetáculo já havia sido apresentado anteriormente na Fundação Iberê Camargo, na Biblioteca Pública do Estado, e no Theatro São Pedro.
Como se vê, Hilda está mais viva do que nunca, e em 2020 esperam-se muitas homenagens à autora no Brasil e no mundo. Mas minha história como ela começou há 40 anos. A primeira vez que ouvi falar do nome Hilda Hilst foi em 1979, em uma matéria do programa Fantástico, na qual ela afirmava se comunicar com mortos. Eu tinha 10 anos e aquilo me assombrou durante semanas, meses. Afinal, quem era aquela mulher que escrevia e vivia isolada, cercada de cachorros, em uma chácara chamada Casa do Sol; que nomeava Deus pelos mais diversos nomes como Relincho do Infinito, Grande Obscuro, Sorvete Almiscarado, Lúteo-Rajado, Querubim Gozoso, O Mudo Sempre, Caracol de Fogo e O Inteiro Desejado, entre tantos outros; e que ainda se comunicava com os mortos? Eu vivia em Maceió, já era um leitor compulsivo e sonhava em ser escritor e poeta.
Oito anos depois uma amiga me deu um livro de Hilda para ler, “A Obscena Senhora D”, e desde então minha vida nunca foi a mesma. Não era e não é uma leitura fácil, mas sabia que estava diante de algo completamente diferente: “Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome, nem porisso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu a procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas. Derrelição Ehud me dizia, Derrelição – pela última vez Hillé, Derrelição quer dizer desamparo, abandono, e porque me perguntas a cada dia e não reténs, daqui por diante te chamo A Senhora D. D de Derrelição, ouviu?”.
Eu não só ouvi como resolvi ler o que podia de Hilda e, mais que tudo, conhecê-la pessoalmente. E lembrei imediatamente do Samuel Beckett por dois motivos. O primeiro, porque ele havia sido secretário do James Joyce [e eu considerava Hilda o Joyce dos trópicos, da língua portuguesa]; segundo porque ele descrevia um de seus personagens da maneira como eu me sentia ao ler Hilda: “…seu ser estava sem eixo ou perfil, seu centro em toda parte e a periferia em parte alguma”. Aos 21 anos sai de Maceió – de ônibus – para São Paulo com uma ideia fixa: ser o secretário de Hilda Hilst. E descobrir novos eixos. Era outubro de 1990, fui morar em uma pensão perto da Avenida Paulista, e de um orelhão liguei três vezes para a Casa do Sol, o único numero de telefone que até hoje nunca esqueci, e que havia conseguido por intermédio de um amigo. Só na terceira vez ela atendeu, lhe disse meu nome e que tinha vindo de Alagoas para conhecê-la. Ela duvidou, fez várias perguntas, respondi todas e só então ela me convidou para ir à Casa do Sol. Nos conhecemos em um final de semana de novembro e em março de 1991 ela me convidou para morar e trabalhar com ela em troca de casa, comida e tempo. Hilda dizia sempre que o tempo é mais precioso que o dinheiro, e mostrava um relógio na sala, parado, que marcava uma hora aleatória e onde se lia: “É mais tarde do que supões”.
Ela reclamava algumas vezes que diziam que sua escrita era hieróglifa, ‘uma tábua etrusca’. Mas eu sempre a lembrava que a escrita hieróglifa significa “escrita dos deuses”. Ela ria discretamente, acendia um Chanceller – seu cigarro preferido – e voltava à leitura do dia. Ela nunca lia apenas um livro, sempre eram dois ou três abertos na sua mesa, todos grifados com canetas de diferentes cores que ela sempre tinha à mão. E invariavelmente um dos livros era algum que ela estava relendo pela segunda ou terceira vez. E na maioria das vezes um deles era alguma biografia, gênero literário que ela gostava muito, ou um livro de filosofia.
Nunca esqueço quando semanas depois de estar morando na Casa do Sol, pedi a ela para ler meus poemas e opinar sobre. Eram cerca de vinte poemas, creio, que selecionei de uma série de mais de 50 escritos entre os 18 e 21 anos. Hilda pediu para eu lê-los em voz alta, pois assim ela saberia o tom, o ritmo que eu tinha dado ao poema, e que ao final da minha leitura iria opinar. Concordei e me pus a ler os poemas. Ao final, Hilda me olhou com firmeza, pegou no meu braço com delicadeza e disse calmamente: “Ju, se você pensa que é poeta está completamente enganado, isso é uma merda, não é poesia. Ainda.” E levanta da cadeira, vai até a estante de livros ao lado e escolhe três livros. Eu jurava que seriam de poesia, mas não. Hilda me dá os volumes e diz para eu ler e que depois iríamos comentar sobre. Eram “Ecce Homo”, do Nietzsche; “O Livre Arbítrio”, do Schopenhauer; e “Temor e Tremor”, do Kierkegaard. E eu de cara perguntei: “Mas Hilda, são todos de filosofia!”. E ela responde: “Sim, Ju, um grande poeta é mais que tudo um grande filósofo. E esses vão te apontar uma direção, para dentro”.
Ler Hilda requer um esforço quase físico. Não é só a mente, o cérebro que age, é todo o corpo. Sua escrita causa estados sinestésicos no leitor. Ela retorce a sintaxe, o fluxo narrativo e cria uma construção lingüística que cria novas e outras possibilidades de leitura, com junções, conexões, fissuras, brechas, rasgos, interstícios, linhas de fuga, dobras e desdobras no discurso. Outras maneiras de habitar as coisas, a linguagem. Nessa estrutura polissêmica feita de epifanias, descalabros, humor, desejo, erudição, sexo, religião, política, filosofia e cotidiano, sua escrita se apresenta comprometida com a produção de sentidos, significados, possibilidades, a produção de perguntas, de questionamentos, de dúvidas. E mais que tudo, de intensidades. Hilda Hilst não produz entendimentos, produz intensidades. E Nesses tempos atuais é mister ler e reler Hilda. Para que possamos continuar sempre a resistir e [re]existir. Com intensidade, vida e liberdade.