Duas mostras em cartaz em São Paulo, até junho e julho, uma próxima da outra, com nomes que dialogam em sua poética – “Sopro”, de Ernesto Neto; e “Suspensão”, de Artur Lescher – reúnem obras desses dois escultores brasileiros contemporâneos em retrospectivas imperdíveis. Foi deitado, imerso dentro de uma delas, que refleti sobre a vida, a morte, a arte, em uma quase epifania tão mental quando sensorial. Pensei na vida como um spoiler contínuo, mas finito. Afinal, a vida é como um jogo de xadrez que ao final Rei e peão vão para a mesma caixa. Nesse mundo virtual no qual há um excesso de linguagem, principalmente visual, também ganha cada vez mais espaço o excesso de palavras, [pré]conceitos, opiniões, verdades afirmadas e muitas contestadas. Uma enxurrada de desatinos e acertos incertos. Porque afinal vivemos em país onde a erosão humana age ao passar dos dias , meses e anos que seguem.
Ambas as retrospectivas fazem com que nós aprendermos a ver como Nietzsche afirmava: ver significa “habituar o olho ao descanso, à paciência, ao deixar aproximar-se de si”. Nessa sociedade do desempenho que nós vivemos, que gera um cansaço, sentimentos de insuficiência e inferioridade, essa pausa para aproximar-se de si é fundamental. Ainda mais em tempos tão surreais, incertos, em suspensão, no qual só um sopro nos alenta, quiçá salva.
Ernesto Neto e Artur Lescher
Como artista, Ernesto Neto vai além e agrega de forma bela ao seu processo artístico um engajamento social, aquilo que como diria o Fernando Deligny, que o verdadeiro educador é um “criador de circunstâncias, capaz de fabricar um novo meio”. Sua retrospectiva reúne 60 obras elaboradas com materiais como meias de poliamida, esferas de isopor e especiarias – em grandes instalações imersivas, que propõem ao espectador um espaço de convívio, pausa e tomada de consciência. Essas grandes estruturas lúdicas acolhem ações e rituais que revelam as preocupações atuais do artista: “a afirmação do corpo como elemento indissociável da mente e da espiritualidade”.
Como bem diz a curadoria, as obras do Neto convocam a participação do visitante e ativam outros sentidos além do olhar. Suas obras criam novas circunstância de fruição artística, criam novos outros meios pelos quais o público não só vê, mas participa, entra, toca, ouve silêncios, sente cheiros e tateia aquelas formas orgânicas em uma pausa que é uma cura.
Já Artur Lescher exibe na Estação Pinacoteca um conjunto de cerca de 120 trabalhos, incluindo instalações, esculturas, maquetes e cadernos de desenho, que evidenciam o eixo principal de sua pesquisa visual, a gravidade – a partir da engenharia e da matemática – na construção de uma poética muito particular. Feltro, papel, madeira, aço e pedra desempenham funções fundamentais que exploram a realidade espacial, evocando o tempo todo equilíbrio, peso, leveza, transparência e fluidez que ocupam o volume do espaço. Mas Lescher também fala de forma alegórica e afiada sobre a gravidade de tudo que acontece aqui e agora.
Não por acaso, a última sala da mostra, dedicada à construção de realidades imaginadas, apresenta cadernos de artista, anotações, processos que também geram para o observador novas circunstâncias de pensar sobre seu metro, seu espaço subjetivo e físico.
Sopro e Suspensão
Precisamos de um tempo sem eira e nem beira, incerto, estendido para esse desfrute, para sermos dissidentes e nômades para [sobre]vivermos nessa “obesidade dos sistemas atuais”, dos sistemas de informação, comunicação, de produção e de [in]satisfação. Onde as aparências são conformes E os protocolos formais diários do trabalho, da vida corporativa fazem com que tudo seja para ontem, para agora.
Precisamos parar de masturbar a existência em um gozo que sempre será o mesmo por mais que sejam outros. Precisamos daquele lugar, quase clichê, mas essencial, que é o da escuta. Falar menos e escutar mais. Perceber mais, sentir mais. Escutar o lugar de onde você habita, escutar do metro que lhe cabe, seja ele quadrado ou não.
“Trata-se de liberar a vida de onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num combate incerto”. E também lembrar sempre que não podemos negociar o inegociável, “tudo aquilo que obstaculiza a afirmação da vida”, como diz Suely Rolnik em uma das suas dez sugestões para uma contínua descolonização do inconsciente. Temos que ser sopro e suspensão. Pérolas entre muitos porcos. Mas tenazes, como ostras agarradas ao rochedo.