Admirável Mundo Velho
Arte & Cultura

Admirável Mundo Velho

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Homo Sapiens X Homo Vulnerabilis

É na ficção científica que a arte e a ciência se encontram para gerar um dos mais cultuados e férteis gêneros da literatura. Em 2020, dois dos autores de duas obras fundamentais da ficção científica comemoram 100 anos de nascimento: Ray Bradbury, autor de “As Crônicas Marcianas”; e Isaac Asimov, responsável pelo clássico “Eu, Robô”. Um duplo centenário justamente no ano em que o que parecia ser uma ficção cientifica tornou-se realidade com a pandemia que assolou o mundo nos últimos meses.

Bradbury, apelidado de “o poeta da ficção científica”, narra em sua obra do começo da década de 1950, sobre um planeta com rios e ruínas ancestrais no qual uma decadente civilização de humanoides telepatas se encontra com exploradores e colonos da Terra. Nessas “crônicas”, o autor escreve sobre foguetes que voam para Marte carregados de tábuas e pregos para construir as primeiras cidades, um personagem que percorre as planícies marcianas plantando sementes de árvores e até padres missionários que constroem um altar para catequizar os últimos nativos sobreviventes no planeta vermelho. Mas ele também aborda temas como a destruição da natureza, o racismo e a guerra que surgem nas narrativas traçando uma grande alegoria da humanidade. Em sua fantasia científica, Bradbury deseja/enseja que o mundo pudesse dar certo se começássemos tudo de novo, mas em outro lugar e com pessoas puras.

Em “Eu, Robô”, também uma coletânea de contos, Isaac Asimov aponta e reflete sobre um tema fundamental da ficção científica. Com a criação de máquinas inteligentes e poderosas como os robôs, como evitar que essas criaturas – tal como o monstro do Dr. Frankenstein – se voltem contra os seus criadores?  Foi Asimov que estabeleceu as célebres Três Leis da Robótica: 1) Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano seja ferido. 2) Um robô deve obedecer ordens de seres humanos, exceto as que entrem em conflito com a primeira lei. 3) Um robô deve proteger a si mesmo, exceto se isso entrar em conflito com a primeira e/ou com a segunda lei. No livro ele também explora as possibilidades de falha das três leis, como quando em um conto narra sobre uma época em que os robôs estão tão antromorfizados que não podem ser diferenciados de um ser humano sem um exame detalhado. Essa coexistência nem sempre harmoniosa entre seres humanos e robôs também podem ser vistas em dois filmes baseados nos livros e contos de Asimov, “O Homem Bicentenário”, com Robin Williams; e “Eu, Robô”, com Will Smith.

Oráculos

Para grande parte da humanidade – a maioria com certeza – a ciência é a verdade, a realidade; enquanto a ficção científica é o faz de conta, a fantasia. E o abismo que separa uma da outra e que parecia intransponível está cada vez perto do nosso cotidiano. Alguns escritores foram como oráculos que previram ficções inimagináveis para a época na qual criaram suas obras. Exemplos não faltam. Mary Shelley, a criadora de Frankenstein, personagem icônico da literatura e do cinema, escreveu a história quando tinha apenas 19 anos, entre 1816 e 1817, tendo publicado o livro em 1818, sem crédito para a autora na primeira edição. Anos depois, em 1826, ela publica “O Último Homem”, romance de ficção científica apocalíptica que conta a história de um mundo futuro que foi devastado por uma praga. Há quase 200 anos a ficção já se entranhava na realidade, no cotidiano, mesmo que esse fosse imaginário, uma ficção.

A primeira viagem à Lua foi antevista em 1835 por Edgar Allan Poe por intermédio de seu personagem cômico Hans Pfaall, de um de seus contos. Do outro lado do Atlântico, 60 anos depois, em 1895, um ano antes de Henri Becquerel ter descoberto a radioatividade, o britâncio Robert Cromie anteviu uma bomba atômica no seu romance “The Crack of Doom ”. E também não podemos esquecer do britânico H. G. Wells, autor de clássicos como “A Máquina do Tempo”, “A Ilha do Dr. Moreau”, “O Homem Invisível” e “A Guerra dos Mundos”, todos escritos no final do século 19. Mas não eram só os escritores que bebiam da fonte das descobertas científicas. O cientista russo Konstantin Tsiolkovski, por exemplo, que criou teorias pioneiras no campo da astronáutica e que foram a base para o desenvolvimento dos programas espaciais russos dos anos 50 e 60, era também um escritor de ficção científica. Em 1920 ele escreveu um romance que profetizava as grandes descobertas do nosso tempo; antevendo grandes estações espaciais nas quais viveriam gerações de pessoas.

Distopias e Inteligência Artificial

Quando se trata de distopias na literatura, “Admirável Mundo Novo” (1932), de Aldous Huxley é uma das obra-prima que sempre merece ser relida. Ele descreve um futuro distante no qual o planeta é dominada pelo Estado Mundial, onde o empreendedor e industrial Henry Ford é adorado como um deus e as pessoas “nascem” de linhas de montagem em que são manipuladas e condicionadas para se ajustarem a castas específicas. Huxley profetizava sobre os bebês de proveta, que só surgiram em 1978, mais de 40 anos depois. Ele também introduziu a ideia de reprodução humana a partir de um única célula, o que só veio ocorrer em 1997, com o nascimento de Dolly, a ovelha gerada por clonagem.

Alan Turing, cuja vida inspirou o filme “O Jogo da Imitação, de 2014, com o ator Benedict Cumberbatch, é considerado o “pai da computação”. Ele publicou em 1950 o famoso artigo Computing Machinery and Intelligence (Computadores e Inteligência), que causou grande repercussão na época, visto a importância do grande matemático que era Turing. Mas o termo inteligência artificial surgiu apenas seis anos depois durante um workshop na Universidade de Dartmouth (EUA) pelo pesquisador John McCarthy, que foi o fundador da primeira disciplina de inteligência artificial em uma universidade. E só foi 45 anos depois, em 2001, que o termo se instaurou na cultura pop, com o filme “A.I Inteligência Artificial”, do Steven Spielberg, que narra a história de um robô criança que foi programado para ter sentimentos.

Homo Sapiens X “Homo Vulnerabilis

Já foram escritos dezenas de livros e roteiros para o cinema sobre vírus letais, com pandemias que dizimavam a humanidade ou deixavam os sobreviventes em luta contra zumbis. O vírus é um protagonista que rende muitas estórias e histórias. Afinal, seu modo de transmissão, disseminação e suas consequências são catastróficas. E cada vez mais a ficção cientifica tem atravessado nosso cotidiano e vice-versa. Mas nos últimos meses o mundo todo foi engolido por uma “ficção científica” que se tornou crível e inimaginável para bilhões de pessoas.

A ensaísta e professora francesa Natacha Vas-Deyres, especialista em ficção científica afirma que “normalmente, na ficção científica, a pandemia elimina a humanidade, mas não o resto do planeta, o que reflete uma ideia antiga: o ser humano é uma espécie como qualquer outra que desaparecerá a qualquer momento”. Mas essa fricção entre a ficção e a realidade, na qual uma se alimenta da outra, há um limite tênue. E além das questões de saúde pública que essa pandemia coloca em evidência com todas suas fragilidades e esforços da comunidade científica, se a questão ecológica não for realmente levada a sério pelos líderes mundiais, em duas décadas, quiçá pouco mais, teremos uma catástrofe ambiental sem precedentes. Muito maior que a pandemia atual, que pode – afinal – colocar em cheque a existência humana no planeta. Tudo isso enfatiza cada vez mais a vulnerabilidade humana. E parece crer que o século 21 só começou realmente agora, com a pandemia. Talvez agora não sejamos mais o homo sapiens, mas um novo Homem, o “homo vulnerabilis“.