A interseccionalidade é uma ferramenta analítica do feminismo negro.
No meu último artigo aqui, apresentei a importância de campanhas como o “Agosto Lilás” para denunciar e conclamar a sociedade como um todo para enfrentar a violência contra mulheres e meninas em nosso país. Essa questão é fundamental em um país no qual a cada minuto, oito mulheres foram agredidas. E esses são dados muito próximos da nossa realidade: de 2020.
Mas, uma outra questão é muito importante para vencermos o que a ONU já chama de endemia: a violência de gênero. Em um país como o nosso, em que raça informa classe, o universalismo nunca caiu bem na definição e implementação de políticas públicas. É preciso, contudo, que eu faça um destaque aqui: universalismo como algo diferente de universalização. Obviamente que defendo universalização do ensino médio, como dizemos com o fundamental; bem como o amplo acesso à vagas nas universidades, universalização do sistema de saúde; etc. Quando me coloco contra universalismos, estou buscando questionar uma ideia de igualdade descolada de equidade. Estou trazendo, sobretudo, o conceito de interseccionalidade.
Em 1995, a intelectual Luiza Bairros publicou o artigo “Nossos feminismos revisitados” em que dialogou e questionou pressupostos que hegemonizavam o movimento feminista como as ideias de “mulher”, de “experiência” e “política pessoal” como universais. Bairros não invalidou o formulado até então, mas o questionou de forma contundente para dizer que esses pressupostos ainda se prendiam a noções eurocêntricas e burguesas sobre as experiências que compunham o ser mulher. O que se fez com isso foi universalizar a opressão sexista, desconsiderando diferentes contextos históricos e culturais em que as opressões ocorrem. Ou seja, se por um lado esses questionamentos foram importantes para deslocar a humanidade antes presa ao masculino; por outro essencializou características e generalizou experiências localizadas variadamente.
A interseccionalidade é uma ferramenta analítica do feminismo negro. Como conceito-ferramenta, a interseccionalidade foi formulada pela advogada norte-americana Kimberlé Crenshaw, ao observar as problemáticas em torno do reconhecimento de reivindicações de mulheres ante desigualdades no mundo do trabalho. Mulheres negras passaram a reivindicar postos de trabalho em empresas e a denunciar o sexismo. E acabavam perdendo a ação com a argumentação da presença de mulheres, brancas. Ao denunciarem racismo, perdiam a ação pois haviam negros nas empresas, homens. Ou seja, a interseccionalidade é cunhada para dar conta de analisar a localização das mulheres negras no sistema de dominação. A ferramenta carrega a ideia de encruzilhamento de identidades sociais e matrizes de dominação (poder – gênero – raça). Se trata de um “cruzamento entre racismo, sexismo e sistemas de poder que geram vulnerabilidades e ausência de seguridade social para mulheres negras.
E por que isso é importante para falar de políticas públicas e enfrentamento à violência contra as mulheres? Porque quando olhamos dados sobre feminicídios, estupros e violência doméstica, vimos que, ao passo que os mecanismos organizados e implementados, sob a premissa do universalismo, têm reduzido a violência de gênero contra mulheres brancas, vimos aumentar essas manifestações de violência contra mulheres negras. Pesquisa do Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (IPEA) mostra que 61% das vítimas de feminicídio são negras. E que, ao passo que houve uma redução em 27% dos homicídios de mulheres brancas, vimos, no mesmo período, um leve aumento em 2% de mulheres negras que sofreram homicídio.
Isso é importante para ser levantado para que pensemos que ao nos engajarmos na campanha do Agosto Lilás, estamos nos engajando para salvar a vida de mulheres negras e trabalhadoras. Mulheres que, boa parte, são chefes de suas famílias, são arrimos de suas famílias, são o suporte de suas comunidades, mas que, infelizmente, não se veem protegidos ou com amparo do Estado para que consigam sair do ciclo e dinâmicas de violência que as acometem.
Para isso, mais do que nunca, precisamos da formulação de políticas públicas que partam da interseccionalidade como conceito-chave e central para que todas sejam protegidas, sem deixar nenhuma para trás. Ou seja, pensar uma rede de apoio e de acolhimento que funcione 24h e aos finais de semana, momentos em que mais ocorrem casos de violência doméstica; que os equipamentos sejam fortalecidos por políticas psicossociais, que compreendam todas as nuances de dificuldades que essa mulher terá que enfrentar para conseguir construir autonomia econômica e se fortifique psicologicamente; que esses equipamentos tenham como encaminhar essas mulheres para casas-abrigo, com estrutura, caso precisem ficar protegidas sob sigilo, entre outras políticas, que devem ser garantidas com recorte territorial e racial, como foco, muito bem definido. Ao ser o suporte para que essas mulheres sejam sobreviventes autônomas.
A gente precisa engajar a sociedade para caminhar de mãos dadas, sem deixar nenhuma de nós para trás.
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