Antifascismo e Antirracismo – Antídotos para o século 21
Arte & Cultura

Antifascismo e Antirracismo – Antídotos para o século 21

Antifascismo e Antirracismo – Antídotos para o século 21

Recentemente, o adolescente negro João Pedro Mattos Pinto foi assassinado atingido por um tiro de fuzil pelas costas na casa de seus tios, em uma operação das polícias Civil e Federal no Complexo Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Pouco tempo depois, nos EUA, acontece o assassinato de George Floyd por policiais americanos na cidade de Minneapolis, o gatilho que faltava para incendiar literalmente os ânimos no hemisfério norte. Surge, então, a campanha “Blackout Tuesday” como demonstração de solidariedade aos protestos do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam). Em meio à calamidade mundial que está sendo a pandemia causada pelo Covid, o mundo está lidando com outros dois vírus que atormentam a humanidade há tempos. O fascismo e o racismo.

Esses foram apenas dois assassinatos entre centenas de outros que ocorrem no mundo todo diariamente. Mas diferentemente de outros grandes protestos contra o racismo, o atual abriga não só negros, mas também brancos, latinos, asiáticos, europeus, etc. Todos em prol do combate ao racismo, o fascismo e a violência policial. A lógica de hierarquização racial foi escancarada de forma brutal e reforçou que ela mata e faz com que as vidas negras tenham menor valor. Segundo estatísticas, a polícia de São Paulo e Rio de Janeiro – sozinhas – matam mais do que a polícia norte-americana inteira. Fato que faz infelizmente reluzir nosso passado escravista, colonial, mesmo aqui tendo atualmente a maioria como população negra, ao contrário dos EUA, onde negros não chegam aos 20% da população. E se voltarmos um pouco no passado recente vamos lembrar de outros negros e negras vítimas desse sistema opressor e letal como Amarildo, Rafael Braga e Marielle.

Panteras Negras e Black Power

Logo depois das ruas, ou quase concomitante, o antifascismo e o antirracismo dominaram as redes sociais e internautas da mais diferentes áreas profissionais e segmentos sociais demonstram sua oposição ao fascismo e racismo com avatares nas redes, além de viralizarem o símbolo do antifascismo, mudando avatares e associando a luta a diversos termos e profissões. Mas você conhece a origem do agora famoso símbolo? Ele vem de 60 anos atrás, em plena década de 1960, que colocou na pauta dos dias a guerra do Vietnam e o movimento flower power, foi a década na qual Malcolm-X e Martin Luther King lutaram por direitos civis, e onde Huey Percy Newton, junto ao amigo Bob Seale, que compartilhavam o mesmo sentimento de indignação diante do racismo, criaram o famoso Partido dos Panteras Negras.

Huey Percy Newton

À frente do partido, Newton formou-se PHD em filosofia pela Universidade da Califórnia e foi o principal responsável pela implantação do primeiro curso de História Afro-Americana em uma universidade estadunidense. Ele, junto aos Panteras Negras, também foi responsável pela implantação de práticas de assistência social como a distribuição de café da manhã para crianças negras carentes, compras básicas como leite, ovos e frutas para famílias afro-americanas pobres que ocupavam os guetos de toda a Califórnia. Essas ações foram imprescindíveis para o reforço e formação do orgulho negro, que mais tarde desencadearia o movimento Black Power. Ao longo das décadas seguinte, principalmente a de 80 e 90, ele e seu icônico partido foi lembrado em músicas por rappers famosos como Tupac Shakur e Notorious BIG, e entrou para a cultura pop norte-americana como figura emblemática da história do país. Newton foi assassinado a tiros em 1989, na Califórnia. Mas seu legado permanece mais que vivo. Seus feitos são lembrados até hoje, e o punho fechado levantado, símbolo dos direitos humanos que Newton ajudou a popularizar entre a população negra, reverbera cada vez mais potente nas últimas semanas.

Ciclo Cumulativo de Desvantagens

O fascismo e racismo operam como mecanismos de manutenção de distâncias socioeconômicas entre brancos e negros. E para esses últimos, o acesso à saúde, a exposição à violência urbana, o desemprego e o déficit de chances educacionais e de moradia criam abismos entre um e outro. O racismo institucional continua a ser largamente praticado no Brasil, mesmo que ninguém goste de reconhecer-se racista ou preconceituoso. A desigualdade provocada desde os primeiros anos de vida escolar tende a surtir efeitos permanentes ao longo da vida e criam o que os sociólogos Carlos Hasenbalg e Nelson do Vale e Silva chamam de “ciclo cumulativo de desvantagens”. O argumento deles é que “por causa das condições de pobreza geradas pelo racismo estrutural, famílias negras terminam por deixar como “herança” baixos índices de escolaridade aos seus filhos que, por sua vez, irão determinar o lugar de subalternidade social destes no mercado de trabalho. Consequentemente, os filhos de uma geração precedente terão muito mais dificuldades em deixar como herança condições adequadas a sua prole, reproduzindo a dinâmica cíclica de desvantagem ao mesmo tempo social e racial”.

Casa Grande & Senzala

A formação social brasileira é caracterizada pelo conjunto de relações de variados grupos nacionais, étnicos e raciais. Além dos colonizadores portugueses, europeus, indígenas, africanos, asiáticos e povos árabes tiveram aqui uma miríade de relações e conflitos, sejam eles no campo político, comercial ou religioso, por exemplo. Somos uma população eminentemente mestiça. Mas entre o final do século 19 até meados da década de 1930 do século passado, ideias de superioridade racial ainda reinavam entre os membros das elites brasileiras, tanto as intelectuais, quanto as políticas e econômicas. Nesse cenário surge o sociólogo pernambucano Gilberto Freire, autor da obra-prima “Casa Grande & Senzala”, publicada em 1933, e na qual  contextualiza e explica a complexa formação nacional brasileira e do papel dos diferentes povos em tal formação, especialmente portugueses, indígenas e africanos.

Angela Davis e Lélia Gonzalez

Quando esteve no Brasil no ano passado, a ativista americana Angela Davis, ícone feminista e nome fundamental do movimento negro nos EUA, falou à plateias lotadas para que lessem a mineira Lélia Gonzalez, que morreu em 1994, aos 59 anos. Filósofa, antropóloga, professora, escritora, intelectual, militante do movimento negro e feminista, Lélia teve uma atuação primordial  de pioneirismo e liderança no movimento negro brasileiro, tendo, inclusive, participou do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras, o IPCN, uma das primeiras organizações do movimento negro. Ela foi também umas das fundadoras do Movimento Negro Unificado, o MNU, que foi fundamental para formatar o discurso crítico ao feminismo brasileiro predominantemente branco, tendo Lélia também participado do ato histórico nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, 1978. Um ano depois foi a primeira mulher negra a sair do país como representante do movimento negro. Foi ela que também criou um conceito, a “neurose cultural brasileira”, para falar sobre o racismo como sintoma, e a manutenção dos privilégios brancos como uma das suas consequências. Não foi por acaso, que em plena ditadura militar, e pela sua atuação no movimento negro, ela foi fichada, como tantos outros ativistas, e considerada subversiva. Uma ótima dica de leitura para saber mais sobre essas e muitas outras histórias e personagens é o livro “Explosão Feminista: arte, cultura, política e universidade”, organizado pela grande Heloisa Buarque de Hollanda.

Aprendizado e prática diária

É visível, mais do que nunca com o acesso às informações virtuais que pipocam em tempo real no mundo revela que a negação do racismo segue democracias adentro. Não só a nossa. Não podemos esquecer que a história brasileira tentou “embranquecer” inúmeros personagens. Como o caso notório do escritor carioca Machado de Assis, que não foi só presidente da Academia Brasileira de letras, mas um dos mais importantes escritores do mundo. Agora são tempos de desconstruir o mundo onde brancos ainda impõem conceitos, estéticas, narrativas e valores, e que ocupam lugares não só de poder e visibilidade, mas também de conhecimento e criação.

Negar o racismo é uma prática de dominação. A sociedade, neste novo século que se instaurou definitivamente com o advento da pandemia, tem como premissa básica e fundamental reconhecê-lo e perceber que sua existência é perversa. O antirracismo para os brancos tem que ser um aprendizado constante e uma prática diária. E isso implica em novos olhares, escutas, percepções, leituras, e mais que nunca uma revisão da história e da linguagem. Uma transformação no ser humano. É mister ler, ouvir, saber quem são personalidades negras essenciais na história contemporânea no Brasil, além de Lélia, como Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro e Sueli Carneiro, só para citar três nomes incontornáveis para se compreender o que está acontecendo e o que já aconteceu. Porque sem dúvida alguma, os antídotos para o século 21 são o antifascismo e o antirracismo.