A história oculta das mulheres judias prostitutas em São Paulo
Inaugura na última semana do mês em São Paulo uma exposição que resgata uma história que tem origem no século passado e ecoa até hoje na comunidade judaica da cidade. “[IN]VISÍVEIS – Polacas, Memória e Resistência”, das artistas Eva Castiel, Fanny Feigenson e Fulvia Molina, recupera a história de mulheres judias trazidas para a América do Sul em um esquema de exploração sexual e tráfico humano. A mostra promove um resgate histórico de memórias que têm sido submetidas a um processo de apagamento, estigmatização e soterramento há décadas.
Composta por uma grande instalação multimídia interativa, vídeos e fotografias, o projeto também apresenta debates, depoimentos, performances e visitas guiadas nas ruas do Bom Retiro onde viveram as polacas. O painel de debates reúne, além das artistas, pesquisadores como Enio Rechtman, Moisés Rabinovicci, Paula Janovitch e Márcio Seligmann-Silva. Mas, para entender a origem de “[IN]VISÍVEIS – Polacas, Memória e Resistência” é necessário voltar no tempo para contextualizar essa história que é pouco conhecida dos paulistanos. A existência das polacas em São Paulo foi apagada, esquecida e sempre foi discriminada, inclusive pela sociedade judaica brasileira da época que não permitia a elas nem um enterro digno. Os índices dessas memórias, suas casas, seus cemitérios, seus túmulos e suas sinagogas, assim como suas próprias identidades foram abandonadas, deixadas à mercê do tempo ou então descaracterizadas e refutadas por uma parcela mais tradicional da comunidade judaica até hoje.
No começo da primeira década do século passado havia uma cartografia do prazer em São Paulo que foi alterada pela reforma urbana que estava em curso. As prostitutas foram deslocadas para as bordas da cidade e os bordéis ficaram confinados principalmente no bairro do Bom Retiro, no qual havia uma grande concentração de imigrantes judeus nesta época, notadamente próximo às estações ferroviárias da Sorocabana e Santos-Jundiaí. Eram judias nascidas no Leste Europeu, de países como Polônia, Hungria, Rússia e Ucrânia, e conhecidas como polacas; pobres em sua maioria, quase sempre analfabetas e sem dote para um bom casamento. Saíram de seus países ameaçadas por ondas de anti-semitismo, sem perspectivas, e acabaram recrutadas por cafetões, muitos também judeus. Eram jovens mulheres recrutadas e sujeitas a diversos tipos de violência e humilhação. Excluídas da sociedade, longe dos familiares e com poucas perspectivas de vida. É preciso lembrar que nas décadas de 1930 e 1940 a situação dos judeus na Europa era dramática. Milhões de homens, mulheres e crianças foram assassinados pelo genocídio nazista, e sobreviver neste universo, não importando como, já era uma grande vitória.
Estabelecidas na cidade, as polacas atuaram – além da região do Bom Retiro – também na Santa Ifigênia, ambas conhecidas na década de 1920 como a zona de baixo meretrício, a chamada “zona de confinamento da prostituição”, perímetro traçado no bairro do Bom Retiro e entorno nas décadas seguintes, até 1950, onde era permitida a prática da prostituição. Mas a dimensão trágica dessa história remonta ao século 19 com a vida dessas mulheres pautada pela miséria e pela exploração desregrada daquelas que ficaram conhecidas como “polacas”.
A partir da década de 1880 elas passaram a ser recrutadas acompanhando a tendência geral do tráfico de mulheres nos países da Europa oriental e da Europa mediterrânica. As polacas sintetizavam a imagem das mulheres pobres oriundas das regiões agrícolas e industrialmente atrasadas do continente europeu. No Rio de Janeiro e em São Paulo, o termo “polaca” remetia comumente à figura da meretriz, não necessariamente polonesa. Entendia-se que eram mulheres loiras ou ruivas delicadas, de olhos verdes ou azuis, vindas de alguns países da Europa e que tornavam-se mais misteriosas e inatingíveis para uma clientela masculina. Nos registros policiais em que apareceram, ou mesmo na imprensa, elas não eram associadas, ao menos de uma forma direta, à figura da prostituta judia. A maior parte das “polacas” que chegava ao Brasil vinha pela cidade de Buenos Aires, na Argentina, conhecida entre 1880 e 1930 como o terceiro centro do tráfico de mulheres do mundo. Era de lá que elas eram enviadas para todo o continente sul-americano.
O rápido crescimento populacional de São Paulo foi um fator fundamental para que as polacas se estabelecessem aqui. Na década de 1870 a população da cidade não passava de 32 mil pessoas; 50 anos depois o número de habitantes já chegava a quase 600 mil pessoas. A população masculina era bem maior que a feminina, e São Paulo – assim como o Rio de Janeiro – recebia povos de várias etnias e diversas religiões facilitado pela Proclamação da República em 1889. A imigração ocorria com menos burocracia, não só de judeus, mas também de alemães, espanhóis e italianos, entre outros povos.
O tráfico das “escravas brancas” tornou-se um assunto importante na comunidade judaica internacional no final do século 19, tanto que em 1885 foi fundada em Londres a Jewish Ladies’ Society for Preventive and Rescue Work (Sociedade de Senhoras Judias para Trabalhos de Prevenção e Resgate), cujo objetivo era combater a prostituição e o tráfico de mulheres judias. As primeiras 67 prostitutas judias de nacionalidade polonesa desembarcaram no Rio em 1867 e logo foram apelidadas de “polacas”. No decorrer dos anos seguintes chegaram centenas de outras que, nas cinco, seis décadas subsequentes estabeleceram-se no Rio, em Santos e em São Paulo.
Tanto no Rio quanto em São Paulo havia uma organização de cafetões que definia as regras de participação no negócio controlando desde os casamentos que deveriam realizar, os lugares onde deveriam recrutar as moças, os preços a serem pagos à família e a quantia em dinheiro que deveria ser entregue à polícia como forma de suborno. A maior parte destas mulheres foi forçada a se prostituir pela Zwi Migdal, uma organização criminosa baseada em Varsóvia, que operou até a década de 1930. Seus agentes viajavam pelas empobrecidas aldeias judaicas da Europa Oriental afirmando serem comerciantes bem estabelecidos na América do Sul em busca de casamento. A ilusão da cidade grande obrigava pais a venderem suas filhas para os mercadores de prazer de modo a garantir sua sobrevivência, sobretudo na Europa oriental e mediterrânica, agrária por excelência. No caso dos judeus, o quadro se agravava pelos diversos pogroms efetuados, espalhando o terror e a miséria pelas comunidades judaicas. Uma vez no Brasil (ou na Argentina, onde a organização teve atividade mais intensa), tendo perdido sua virgindade, não conhecendo o idioma local e nem possuindo qualquer habilitação profissional, seu destino estava selado. As autoridades locais eram complacentes com a organização em função dos subornos recorrentes.
As mulheres, os traficantes e os cafetões da Zwi Migdal eram marginalizados pelo restante da comunidade judaica que fazia vistas grossas à atividade. Tanto, que nem sequer era permitido que ao falecerem elas fossem sepultadas nos mesmos cemitérios que os demais judeus. Também não era permitido às polacas que frequentassem as sinagogas. Embora todos na comunidade soubessem que os cafetões estavam entre os principais patrocinadores do teatro iídiche nas décadas de 1910 e 1920, especialmente no Rio de Janeiro. As polacas adornadas com joias exuberantes e vestidos deslumbrantes eram presença constante nos camarotes e nas primeiras filas das estreias de novas produções, ocasião utilizada pelos cafetões para exibir suas “mercadorias”.
Na época, as polacas criaram fundos comunitários para assistência às enfermas e velhas, construíram suas próprias sinagogas nas quais celebravam as principais festas judaicas e adquiriram seus próprios cemitérios. O maior, o de Inhaúma, Rio, com mais de 700 túmulos; e outros dois em São Paulo, um no bairro de Santana, que tinha mais de 250 túmulos e foi demolido na década de 70; e outro menor, o de Cubatão, que existe até hoje, com cerca de 80 túmulos. É nessa cidade que abriga esse pedaço esquecido da história dos judeus no Brasil. Lá, em um cemitério em frente a uma refinaria da Petrobrás estão as lápides e os corpos de cerca de 60 mulheres e 14 homens judeus. A maior parte dos nomes gravados nas lápides tornou-se ilegível e a população local acredita que o lugar é mal-assombrado. Em meio às tumbas ainda é possível encontrar muitas adornadas com retratos impressos em porcelana com imagens dessas mulheres.
Vale lembrar que no judaísmo, o cemitério tem uma importância fundamentada no respeito ao corpo e possui ritualização para o sepultamento. São considerados impuros os corpos dos suicidas e das prostitutas, e que por isso não deveriam ser sepultados em cemitérios judaicos. Para as polacas, no entanto, o espaço mortuário continuava a ser um local sagrado independente de sua profissão. A importância de ter um cemitério era mais importante do que ter uma sede social própria.
A maioria delas permaneceu na profissão até o fim de seus dias como prostitutas e mais tarde gerentes ou proprietárias de bordéis. Algumas deixaram suas marcas no folclore. A melodia “Judia Rara”, do sambista Moreira da Silva, foi dedicada a sua amante Esthera Lado Konez. As últimas a morrer foram as que mais sofreram em função da falta de recursos. Algumas tinham filhos e netos que as ajudaram. Muitas, como a amante de Moreira da Silva, cometeram suicídio. Outras morreram nas mais abjetas condições em sanatórios estatais para leprosos ou para doentes mentais. A Exposição apresenta a dimensão trágica da história destas vítimas de uma organização criminosa, “proletárias do sexo”, jovens mulheres iludidas por aliciadores que prometiam um vida melhor no Brasil. Todas sujeitas à marginalidade social e cuja história caiu no ostracismo sendo pouco a pouco esquecida.
Mas agora, em “[IN]VISÍVEIS – Polacas, Memória e Resistência”, Eva, Fanny e Fulvia resgatam essa história obnubilada pelo tempo. E o público poderá conferir na mostra elementos físicos que remetem à ideia do sepultamento e do esquecimento. Os visitantes também terão acesso a áudios que resgatam as memórias dessas mulheres e apontam como seu sentido de resistência pode se relacionar com o momento presente no qual diversos apagamentos estão sendo engendrados pelo governo federal e servir como exemplo para futuras gerações.
SERVIÇO:
(IN)VISÍVEIS – POLACAS – MEMÓRIA E RESISTÊNCIA
Oficina Cultural Oswald de Andrade.
Rua Três Rios, 363, Bom Retiro, São Paulo, SP. Tel: (11) 3222-2662.
Abertura: 26/10 às 14h. Visitação: 28/10 a 14/12 – segundas, terças, quartas, quintas e sextas, das 9h/ 21h; sábados, das 10h/ 18h.
“Desgraçadinha” e “Polaca maldita,, suja, podre” eram meus apelidos quando criança.
Uma fotografia contou-me o segredo.