Afrofuturismo
Arte & Cultura

Afrofuturismo

Afrofuturismo

Ao longo da história, onde e como você identifica a cultura do povo negro? É muito provável que o período da escravidão seja a sua memória mais latente, mas para além dos irreparáveis anos de subjugação à dominação branca, os povos de origem africana foram (e são) donos de impérios, pioneiros na ciência, e resultado vivo de extrema riqueza histórica e cultural. Ao resgate dos mitos africanos e às suas perspectivas de futuro é dado o nome de Afrofuturismo, movimento que resgata a ancestralidade e o protagonismo do rosto negro através das artes. Não teríamos outro tema para terminar o Mês da Consciência Negra.

Imagem: Revista Cult

Afrofuturismo e contracultura

O Afrofuturismo recebe este nome no início dos anos 90, quando o jornalista, crítico e pesquisador branco Mark Dery publicou o ensaio “Black to the future”, em 1994, na tentativa de decodificar um movimento cada vez mais pujante à época de escritores, músicos, cineastas e artistas em geral que passaram a buscar o resgate da ancestralidade negra em suas obras. Mais do que o resgate ao passado, o movimento o faz para a reconstrução de uma linha histórico-mitológica que leve ao futuro sempre negado ao povo negro.

Quantos filmes de ficção científica possuem protagonistas ou personagens negros? Quantos desses com diretores e roteiristas negros? Quantos escritores negros você conhece? Pintores, filósofos, estilistas? Quantas modelos negras você vê nas capas de revistas? O Afrofuturismo surge para deixar ainda mais visível a diáspora no tempo qual vive o povo negro, por anos na história colocados em uma posição de subcultura, com pouco ou quase nulo reconhecimento de suas formas de arte e possibilidades de expressão.

Apesar de assim identificado nos anos 90, o Afrofuturismo é resultado de um pensamento que surge ainda nos anos de 1950 pós-Segunda Guerra Mundial, o Beat. A Geração Beat foi um movimento contra-cultural, antimaterialista, identificado como um embrião do movimento Hippie por buscar reestruturar os pilares norte-americanos e promover novas formas de pensar a sociedade. Foi um movimento underground que nasceu em Nova York com a união de poetas, compositores sobretudo de jazz e filósofos que propunham quebrar com o pensamento conservador e permitir novas realidades.

Em meio a este contexto surge um dos nomes pioneiros do movimento Afrofuturista: Sun Ra. Com nome em homenagem ao Deus egípcio Rá e à luz do astro sol, Sun Ra foi um músico de arte complexa. Levou para o jazz seu conhecimento religioso, cósmico e esotérico, e uniu à música de arranjos inovadores e eletrônicos seus pensamentos filosóficos sobre a sua própria existência e sobrevivência do povo negro. Sun Ra criou um novo universo através das roupas, do cinema e da música, onde seria possível pensar a realidade negra enquanto protagonista. Sua história e filosofia é contada no filme “Space is the Place”, de 1974.

Afrofuturismo e o protagonismo negro

Pensar Afrofuturismo é pensar que o negro tem um passado, assim como um futuro. Os anos de opressão apagaram a história das civilizações negras, como se os povos brancos fossem os únicos a produzir arte, conhecimento e riquezas. A verdade, porém, é que o povo Egípcio, por exemplo, foram pioneiros na arquitetura e nos conhecimentos científicos. O pensamento comum sobre a história da cultura negra é sempre ligado à ao tribal, e nunca ao futurístico. O que se constrói enquanto passado negro, é um passado de dominado, e não de produtor de riquezas. O que o movimento Afrofuturista faz é abrir espaço para que artistas negros recontem essas histórias.

Uma potente visibilização do Afrofuturismo se dá pela ficção científica. Seja na literatura, como nos romances da escritora negra Octavia Butler, ou no cinema, como o recente Pantera Negra, que se passa no mitológico (e futurista!) reino de Wakanda, o Afrofuturismo se pauta, num primeiro momento, da ficção científica por ser este o gênero que constrói o imaginário popular de como poderão ser as sociedades futuras. É preciso então que artistas ocupem estes espaços de produção, para que também se pense essas sociedades futuras negras.

O Afrofuturismo, portanto, cria uma ponte entre futurístico e ancestralidade. Resgata os mitos que constroem a cultura negra e visa a construção frequente de um futuro negro. Em 2017 no Brasil, a cada 100 assassinatos, 71 foram de pessoas negras (dados do Atlas da Violência 2017). Por isso é tão importante defender um futuro onde as pessoas negras sigam ativas e protagonistas. Onde os negros sejam heróis e também fonte de inspiração. E essa visão extrapola todas as formas de arte. É um pensamento pluridisciplinar: está na música, moda, cinema, literatura, artes plásticas, na filosofia e na ciência.

Janelle Monae, FKA Twigs, Erykah Badu e Outkast são alguns dos artistas que levaram a estética negra futurista para o mainstream, para os grandes veículos de comunicação. O Portal Geledes lista fontes afrofuturistas nas diferentes modalidades. Na literatura: Octavia Butler, Samuel Delany e Ytasha Womack. Na plástica: Basquiat e Spike Lee. Na moda: Project Tribe e DaoLondon. Na música: Parliament, Funkadelic, Grace Jones, Jimi Hendrix, Miles Davis.

No Brasil, o grupo Senzala Hi-Tech e o escritor Fábio Kabral são nomes que ascendem os debates sobre o Afrofuturismo. Kabral é autor de O Caçador Cibernético da Rua 13, que conta a aventura do ciborgue João Arolê no universo de Ketu 3, obra futurista inédita que dialoga com a mitologia Iorubá. No artigo “Afrofuturismo: Ensaios sobre narrativas, definições, mitologia e heroísmo”, Kabral define o movimento:

“O afrofuturismo surge como uma possibilidade de cura para as feridas profundas causadas por um mundo anti-negritude. É uma oportunidade de projetarmos, por meio da ficção, nossa religação com a ancestralidade, nos apropriando das narrativas, imaginários e mitologias, e restaurando-os à sua originalidade africana. O afrofuturismo, orientado pela afrocentricidade, nos convida a essa pretensão de entender os povos africanos como pioneiros da escrita, ciência, filosofia e artes; fundamentados por esse passado de tecnologia e espiritualidade, passamos a entender que somos aptos a criar um novo futuro com as nossas próprias mãos. Pois, acima de tudo, afrofuturismo é a liberdade de ser e expressar o que quiser.”

Image: Mostra Afrofuturismo – Cinema e música em uma diáspora intergaláctica

O afrofuturismo, portanto, retira o negro da periferia e o coloca no centro; da sua história, cultura e, principalmente, do próprio futuro.


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